A minha subida ao Poder

Por Miguel Esteves Cardoso

Fotografia: Fernando Mata


No outro dia, à conversa com o meu amigo Pedro acerca de um trabalho que nos encomendaram, surgiu-nos uma ideia ousada, que desenvolvemos alegremente. Mas caí em mim e disse: "É escusado estarmos, a perder tempo com isto, porque os gajos nunca vão aceitar." "Ó Miguel", disse o Pedro pacientemente, "os Gajos agora somos nós !"

Desde sempre, os Gajos são os que mandam, convidam, encomendam, aprovam, e avaliam as coisas que a Malta faz. São os Gajos que controlam a situação. Foi com um misto de choque e de prazer que me dei conta que eu era um deles. Quer queira ou não queira, sou hoje um de os Gajos de que falam a Malta mais nova. Tão certo como seguir-se a Primavera ao Inverno, cada fornada de "gajos" é substituída pela seguinte.

Ainda não tinha percebido é que chega uma altura na vida em que uma pessoa sobe ao poder sem dar por isso. Calha a vez a cada um. É como os iogurtes no supermercado. Seja de framboesa ou de nêspera, seja artificial ou biologicamente puro, cada iogurte, como cada homem, tem o seu tempo, o seu prazo de validade, o momento em que se considera fresco, pronto para
comer, conforme os apetites de quem decide. Passado o prazo, vai-se á vida.

O poder é como uma aura que nos cresce à volta da careca. Santificado fica o nosso nome. É involuntário e é injusto, porque há sempre pessoas, mais novas ou mais velhas, que querem ou merecem o poder muito mais do que nós. Não estou a falar daqueles espíritos tão sacrificados ou sôfregos (geralmente as duas coisas ao mesmo tempo) que procuram o poder desde pequeninos. Estou a falar dos inocentes, como eu. Ou pelo menos daqueles suficientemente vaidosos para pensar que se conseguem safar só com o talento com que nasceram.

É horrível passar de uma situação de Malta, em que uma pessoa se esforça para que os Gajos aprovem o nosso projecto e se riam das nossas piadas e fiquem satisfeitos quando sai bem, para uma situação em que a Malta se ri das nossas piadas mesmo quando não têm piada nenhuma, na esperança que nós, os Gajos lhes aprovemos os projectos. É horrível porque, de repente, passa-se de iniciador e de abelhinha, para Salomão e apicultor. Odeio a maneira como a Malta baixa ligeiramente a cabeça diante mim, como se eu estivesse embebido nalguma substância sagrada.


Odeio como olham para mim, não à espera que eu proponha, mas que eu decida. Odeio a maneira hipócrita de parecerem respeitosos e também odeio a maneira sincera.

Para não cair nessa esparrela, porque acho que ainda tenho talento para fazer muita coisa, sou obrigado a trabalhar o dobro do que trabalhava antes, a ser mais malcriado do que acho conveniente, a fazer asneiras que nunca faria, só para merecer o desrespeito deles. Esse desrespeito essencial que me mantém, nem que seja só com um dedinho do pé, entre a Malta e vai impedindo que eu seja integralmente despachado para o andar de cima, onde estão os Gajos.

A verdade é que eu não quero ser um deles. Que fique registado de uma vez por todas que, por alma das minhas queridas filhas, jamais aceitarei algum cargo, seja ele de que espécie for, nem cultural nem honorífico nem anónimo. E governativo, nunca. Nem em caso de emergência nacional, nem mesmo havendo uma guerra contra os espanhóis, nem mesmo para Presidente da República, nem que tivessem morrido todas as pessoas com mais de 35 anos excepto eu e o Carlos Marques da UDP. Seria o primeiro a gritar "Marques para Belém, já !"

Não é que eu tenha alguma coisa contra o Poder. Não tenho. Quero é que sejam outros a exercê-lo. Prefiro que um Governo me persiga e trame a que ele me dê numa bandeja a oportunidade de salvar de uma vez por todas a Pátria. E só Deus sabe o quanto eu gostava de salvá-la e ser por ela eternamente reconhecido.

Prescindo. Nem é cobardia. Prefiro ficar entre a Malta, a salvar bocadinhos pequeninos da Pátria. Prefiro ser um nadador-salvador simpático que vai buscar as bóias que os miúdos perdem nas ondas, à angústia e à pomposidade e à importância do Comandante que, antes do Titanic português bater, dissesse "É melhor mudar de curso - cheira-me que há para aqui algum icebergue ou outra porra qualquer."

O pior é que não se pode contrariar a natureza. A razão porque o poder corrompe é o jeito que dá. Dá um jeitaço. É facílimo arranjar um razão válida e não-pessoal para tudo o que se faz. É dificílimo ter um problema, ter uma solução mesmo ali à mão e não resolvê-lo. Sobretudo se a solução alternativa fica no cu de Judas. É como ser o Schwarzenegger, já bebido, e aparecer um malandreco tubereuloso, mais bebido ainda, que nos apalpa a namorada e nos encosta a brilhantina ao umbigo, dizendo"Vai lá fora ver se chove, a ver se não levas uma carga de porrada." É preciso muita paciência e engolir muito em seco para não ceder à tentação de lhe dar, ao menos, um estalo na moleirinha.

O poder deixa as pessoas mal-habituadas. Ao princípio é óptimo porque tudo o que era difícil se torna fácil. Quem pode, pode e sabe bem, mas quando já se pôde é melhor ainda - um ver-se -te-avias. O pior é que a vida é matreira e, dentro de pouco tempo, parece tudo difícil outra vez. Quem come a papinha feita, depressa encontra caroços em cada papa futura. Quem tem muitos criados arranja novas maneiras de se maçar. Aposto que o Ceausescu não andava menos chateado com a vida em geral, e com a chatice de arranjar os bens que considerava essenciais, do que os outros romenos.

O poder só dá prazer ao princípio. Depois vicia. Com uma agravante: a partir de certa altura, não se consegue arranjar mais. Como se sabe, há um preconceito geral contra o poder ilimitado. Os maiores ditadores chegam a uma altura em que se sentem impotentes. É pena. Se o poder fosse como a heroína e se pudesse ir aumentando sempre com o mesmo efeito, ainda era capaz de experimentar. Assim, não.

Chego assim à sindroma do Não é pelos meus lindos olhos. Assim como é humilhante para o capitalista se tratado não como uma pessoa mas como um mero detentor de capital, como quem diz "Se não tivesses dinheiro, podes ter a certeza que eu não estava aqui a perder tempo", também é humilhante para quem é poderoso ser esquecido por aquilo que sabe fazer, na ânsia de chegar à questão do que ele simplesmente pode ou não fazer. Há com certeza muitos homens ricos e muitos homens poderosos com um lindo par de olhos, mas não deve haver um que tenha a certeza de os ter. A Malta, em contrapartida, ainda se pode dar ao luxo de ver fazer as coisas pelos lindos olhos deles, efectivamente. Os Gajos, em suma, sofrem tanto ou mais do que a Malta. Viciam-se, vão acumulando pderes, até baterem no tecto e levarem com o ricochete. Acabam chateados e desconfiados com toda a gente. Só pelo facto de terem poder, são constantemente ridiculrizados pela Malta, sobretudo pela malta dos jornais, o que é tão injusto como ser gozado só pelo facto de se ter o nariz grande. Mas tem de ser, não é?

Quando são corridos, toda a gente se esquece deles. Quando eu era da Malta gostavam mais de mim. Agora já há quem não goste só pela razão, excelente e imbatível, de eu ser um dos Gajos, que "controlam esta merda". Se calhar, sem querer, na minha ânsia de ficar entre a Malta enquanto me vou dando com os Gajos que não posso evitar, por serem meus amigos e colegas, acabo por fazer figura de agente duplo.

Não deixa de ser verdade, porém, que não procuro o poder por ser uma alma pura, mas por ser um rapaz inteligente, que já sabe como elas mordem; vaidoso, por julgar que hei-de conseguir o que quero sozinho sem precisar que outros trabalhem para mim, e infantil por não ter perdido o gozo de desobedecer àqueles que mantêm um mínimo de ordem, enfim, que fazem o favor de mandar em mim e que, no fundo, respeito. Não muito, mas respeito. Vá lá: cada vez ,mais. Pronto.

in K, nº3

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