Fotografia: Inês Gonçalves
Texto: Miguel Esteves Cardoso Primeiro, as verdades. O Norte é mais Português que Portugal. As minhotas são as raparigas mais bonitas do País. O Minho é a nossa província mais estragada e continua a ser a mais bela. As festas da Nossa Senhora da Agonia são as maiores e mais impressionantes que já se viram.
Viana do Castelo é uma cidade clara. Não esconde nada. Não há uma Viana secreta. Não há outra Viana do lado de lá. Em Viana do Castelo está tudo à vista. A luz mostra tudo o que há para ver. É uma cidade verde-branca. Verde-rio e verde-mar, mas branca. Em Agosto até o verde mais escuro, que se vê nas árvores antigas do Monte de Santa Luzia, parece tornar-se branco ao olhar. Até o granito das casas. Mais verdades. No Norte a comida é melhor. O vinho é melhor. O serviço é melhor. Os preços são mais baixos. Não é difícil entrar ao calhas numa taberna, comer muito bem e pagar uma ninharia. Estas são as verdades do Norte de Portugal. Mas há uma verdade maior. É que só o Norte existe. O Sul não existe. As partes mais bonitas de Portugal, o Alentejo, os Açores, a Madeira, Lisboa, et caetera, existem sozinhas. O Sul é solto. Não se junta. Não se diz que se é do Sul como se diz que se é do Norte. No Norte dizem-se e orgulham-se de se dizer nortenhos. Quem é que se identifica como sulista? No Norte, as pessoas falam mais no Norte do que todos os portugueses juntos falam de Portugal inteiro.
Os nortenhos não falam do Norte como se o Norte fosse um segundo país. Não haja enganos. Não falam do Norte para separá-lo de Portugal. Falam do Norte apenas para separá-lo do resto de Portugal. Para um nortenho, há o Norte e há o Resto. É a soma de um e de outro que constitui Portugal. Mas o Norte é onde Portugal começa. Depois do Norte, Portugal limita-se a continuar, a correr por ali abaixo. Deus nos livre, mas se se perdesse o resto do país e só ficasse o Norte, Portugal continuaria a existir. Como país inteiro. Pátria mesmo, por muito pequenina. No Norte. Em contrapartida, sem o Norte, Portugal seria uma mera região da Europa. Mais ou menos peninsular, ou insular. É esta a verdade. Lisboa é bonita e estranha mas é apenas uma cidade. O Alentejo é especial mas ibérico, a Madeira é encantadora mas inglesa e os Açores são um caso à parte.
Em qualquer caso, os lisboetas não falam nem no Centro nem no Sul - falam em Lisboa. Os alentejanos nem sequer falam do Algarve - falam do Alentejo. As ilhas falam em si mesmas e naquela entidade incompreensível a que chamam, qual hipermercado de mil misturadas, Continente.
No Norte, Portugal tira de si a sua ideia e ganha corpo. Está muito estragado, mas é um estragado português, semi-arrependido, como quem não quer a coisa. O Norte cheira a dinheiro e a alecrim. O asseio não é asséptico - cheira a cunhas, a conhecimentos e a arranjinho. Tem esse defeito e essa verdade. Em contrapartida, a conservação fantástica de (algum) Alentejo é impecável, porque os alentejanos são mais frios e conservadores (menos portugueses) nessas coisas.
O Norte é feminino. O Minho é uma menina. Tem a doçura agreste, a timidez insolente da mulher portuguesa. Como um brinco doirado que luz numa orelha pequenina, o Norte dá nas vistas sem se dar por isso.
As raparigas do Norte têm belezas perigosas, olhos verdes-impossíveis, daqueles em que os versos, desde o dia em que nascem, se põem a escrever-se sozinhos. Têm o ar de quem pertence a si própria. Andam de mãos nas ancas. Olham de frente. Pensam em tudo e dizem tudo o que pensam. Confiam, mas não dão confiança. Olho para as raparigas do meu país e acho-as bonitas e honradas, graciosas sem estarem para brincadeiras, bonitas sem serem belas, erguidas pelo nariz, seguras pelo queixo, aprumadas, mas sem vaidade. Acho-as verdadeiras. Acredito nelas. Gosto da vergonha delas, da maneira como coram quando se lhes fala e da maneira como podem puxar de um estalo ou de uma panela, quando se lhes falta ao respeito.
Gosto das pequeninas, com o cabelo puxado atrás das orelhas, e das velhas, de carrapito perfeito, que têm os olhos endurecidos de quem passou a vida a cuidar dos outros. Gosto dos brincos, dos sapatos, das saias. Gosto das burguesas, vestidas à maneira, de braço enlaçado nos homens. Fazem-me todas medo, na maneira calada como conduzem as cerimónias e os maridos, mas gosto delas. São mulheres que possuem; são mulheres que pertencem.
As mulheres do Norte deveriam mandar neste país. Têm o ar de que sabem o que estão a fazer. Em Viana, durante as festas, são as senhoras em toda a parte. Numa procissão, numa barraca de feira, numa taberna, são elas que decidem silenciosamente. Trabalham três vezes mais que os homens e não lhes dão importância especial. Só descomposturas, e mimos, e carinhos. O Norte é a nossa verdade. Ao princípio irritava-me que todos os nortenhos tivessem tanto orgulho no Norte, porque me parecia que o orgulho era aleatório. Gostavam do Norte só porque eram do Norte. Assim também eu. Ansiava por encontrar um nortenho que preferisse Coimbra ou o Algarve, da maneira que eu, lisboeta, prefiro o Norte. Afinal, Portugal é um caso muito sério e compete a cada português escolher, de cabeça fria e coração quente, os seus pedaços e pormenores.
Depois percebi. Os nortenhos, antes de nascer, já escolheram. Já nascem escolhidos. Não escolhem a terra onde nascem, seja Ponte de Lima ou Amarante, e apesar de as defenderem acerrimamente, põem acima dessas terras a terra maior que é o "O Norte". Defendem o "Norte" em Portugal como os Portugueses haviam de defender Portugal no mundo.
Este sacrifício colectivo, em que cada um adia a sua pertença particular - o nome da sua terrinha - para poder pertencer a uma terra maior, é comovente. No Porto, dizem que as pessoas de Viana são melhores do que as do Porto. Em Viana, dizem que as festas de Viana não são tão autênticas como as de Ponte de Lima.
Em Ponte de Lima dizem que a vila de Amarante ainda é mais bonita. O Norte não tem nome próprio. Se o tem não o diz. Quem sabe se é mais Minho ou Trás-os-Montes, se é litoral ou interior, português ou galego? Parece vago. Mas não é. Basta olhar para aquelas caras e para aquelas casas, para as árvores, para os muros, ouvir aquelas vozes, sentir aquelas mãos em cima de nós, com a terra a tremer de tanto tambor e o céu em fogo, para adivinhar.
O nome do Norte é Portugal. Portugal, como nome de terra, como nome de nós todos, é um nome do Norte. Não é só o nome do Porto. É a maneira que têm de dizer "Portugal" e "Portugueses". No Norte dizem-no a toda a hora, com a maior das naturalidades. Sem complexos e sem patrioteirismos. Como se fosse só um nome. Como "Norte". Como se fosse assim que chamassem uns pelos outros. Porque é que não é assim que nos chamamos todos?
in K, Nº 2, Novembro de 1990
Comentários
Apenas um pequeno reparo: Amarante é cidade.
E eu também gosto do Norte... gosto do Centro... gosto do Sul. Gosto do meu país.
Não gosto de sermos excluídos, ainda que em texto, porque o Norte é Portugal (?!). Portugal somos nós, Portugal sou eu...
Ninguém excluiu ninguém!
Andam a querer ressuscitá-la? não façam isso... vejam o que aconteceu à Grande Reportagem que se recusou a morrer... e morreu mesmo, mas já foleirota de tão morta que estava.
Vejam as partes II dos filmes. São sempre uma merda. O Seinfeld é que sabe. Acaba, deixa saudades e pronto. E saudades são saudades, de Norte a Sul. Até o Alberto joão terá as suas saudades. Juizinho e vinho.
(ai isto tem censura prévia, é? não gosto. não volto.)
Eu sou do sul, é uma verdade, mas antes de o ser, sou português. Tb é verde que o texto refere zonas do sul, como Lisboa, Alentejo, etc, mas não refere algo que devia ser inerente a todos os portugueses, norte, centro, sul, litoral, interior, ilhas, etc, que todos juntos formamos um só, somos nós, em conjunto que fazemos Portugal.
Se quiserem passear os olhos pelo Minho visitem http://imagemminhota.blogspot.com
è um pedacinho do Minho verde e claro como a água translúcida que o presenteia.
Nada é pior do que a arrogância de quem julga saber tudo e nada sabe. É por ideias destas que este país não avança. Quando é que vamos pensar no nosso país como um todo?! Cada região é especial à sua maneira. E é isso que nos faz únicos.
Doí na alma ver o nosso país ser reduzido apenas ao Norte... E os próprios nortenhos deveriam ser os primeiros a revoltar-se com esta falta de consideração para com um país que é de todos nós...
Norte como nome.
Seria bom para vocês como voces tanto apregoam como para o resto de Portugal.
Quem ama a sua terra, as suas origens e cultura irá sempre ter antes de tudo um cunho regional.
Isso acontece aos Nortenos com o Norte, aos Galegos com a Galiza, aos catalães como a Catalunha, aos Bretões com a Bretanha e por aí em diante.
Eu antes de tudo sou Nortenho e depois sou Português.
Ouvir lisboetas a apregoar a unidade nacional faz-me rir pois o Norte produz 80 por cento da riqueza económica, a maioria dos recursos Naturais estão no Norte assim como toda a origem e raízes mais antigas de Portugal como por exemplo a própria Lingua que descende do Noroeste.
Desculpem os restantes Portugueses mas eu tenho um imenso orgulho de ser Nortenho e Minhoto, de entre as duas mais importantes cidades da fundação da nacionalidade que são Guimarães e Braga.
E sim, neste pequeno cantinho temos Serras com neve, vales verdejantes, centenas de riachos e rios, um mar sem fim, milhares de histórias para contar sempre envoltas no perfume da enorme beleza do Norte.
Se os do sul não tem orgulho nem amam a terra deles como os Nortenhos gostam do Norte, o problema é deles e não do Norte.
Não vou começar a rebaixar a minha mais profunda identidade só para agradar aos lisboetas que tem um enorme complexo de inferioridade no que toca à Portugalidade.
Pois é: Portugal É O NOME DO NORTE.
E isso não há centralismo que o possa desfazer.