Está na cara


Texto: Miguel Esteves Cardoso

Em bom português, a expressão “Estás com boa cara" significa exactamente: "Ultimamente tens andado com má cara." A partir de uma certa idade, a cara י muito importante. De nada interessa uma pessoa sentir-se bem, ou estar bem, ou mesmo ser bem. Em Portugal, todos os check-ups do mundo não valem o olhinho arguto de um transeunte que diz "Estás com má cara".


A nossa civilização baseia-se numa ideia tripla:
1.Tudo está na cara.
2.A palavra "cara" é feminina.
3. A mim não me enganas tu.

As pessoas podem fazer o que quiserem, mas ninguém liga ao que elas fazem. Para os portugueses só interessa a cara que têm. Pode ser-se arquitecto mas se calha ter "cara de quem nunca fez um desenho na vida" está lixado. Pode nunca ter provado uma pinga de vinho na vida mas se alguém afirma que é alcoólico e há outro que diz "Tem cara disso ... " pode considerar-se bêbado para todos os efeitos. Pode ser a pessoa mais amistosa e gregária do mundo, mas se tem "cara de poucos amigos" toda a gente foge dele.


A cara mais interessante é a "cara de caso", que não tem tradução possível nas outras línguas. Trata-se da cara de quem acaba de passar por certa experiência sem se querer, pelo menos à partida, descoser. Em português, a exclamação “Estás com cara de caso... " significa a interrogação "O que é que se passou?"


No Brasil, que é Portugal levado às últimas consequências, sem complexos nem mariquices de qualquer género, chega-se ao ponto de reduzir um indivíduo ao semblante, usando-se "cara" para dizer "pessoa". O mais engraçado é que, sendo "cara" do género feminino, se diz "o cara". Imagine-se que se dissesse "o bochechas". Não, porque "o bochechas" até se diz. De qualquer forma, é estranho que se diga “o cara", referindo-se um homem, mas não se diga “a cara" quando se fala de uma mulher. Não? Em Portugal limitamo-nos a dizer "Minha cara amiga", que poderá não querer dizer, ao contrário do que se pensa, “Minha querida amiga", mas sim "Minha carinha amiga", como quem diz "Minha carinha laroca". Também não? Então pronto.


A confusão sexual à volta da cara é característica. Uma das coisas que mais me preocupa e encanta é a questão dos géneros na língua portuguesa. No corpo humano é encantador como masculino e feminino se complementam. Os olhos estão com as sobrancelhas, o nariz está com as narinas, a boca está com os lábios, as orelhas estão com os ouvidos, o queixo está com as mandíbulas e o cabelo está com a cabeça. Para cada coisa arrapazada há uma coisa arraparigada.
Esta sintonia prolonga-se no resto do corpo. As pernas são claramente femininas, mas são interrompidas pela solidez masculina dos joelhos. As belinhas barrigas das pernas, todas curvilíneas e insinuantes, encontram de bom grado a robustez machista dos tornozelos. As mãos, espalmadas e bonitas, não passam sem os dedunchos decididos e meninos. Aliás, é engraçado como tudo o que é ossudo e rijo tende a ser masculino (tornozelos, pulsos, joelhos, cotovelos, pescoço, ombros, dedos, quadris) e tudo o que é arredondado e fofinho tende a ser feminino (bochechas, nádegas, maminhas, ancas, pernas, barriguinha). Em tudo se encontra um equilíbrio yin-yang, facilmente explicável com filosofias da treta. Excepto numa coisa. Por que carga de água é que os órgãos internos mais importantes são todos do género masculino? Que lição há aqui para aprender? O coração, o fígado, os rins, o cérebro, os nervos, os intestinos ... até o sacana do útero é masculino! A representação feminina ou é superficial (a pele), trivial (laringe, faringe, vesícula) ou óbvia (vulva, vagina, trompas). O que é que isto quererá dizer? Que são os homens que trabalham, lá nas profundidades da casa das máquinas, enquanto as mulheres se limitam a dar a cara? Tudo isto é muito complicado e sabe-se lá se levará a algum lado. Os estrangeiros ficam fascinados. O Sol é masculino mas as estrelas são femininas. A Lua é feminina mas os planetas são masculinos. O mar é masculino mas a água é feminina. O fogo é masculino mas a chama é feminina. A terra é feminina mas o solo é masculino. Se há uma lógica interna na atribuição sexual das coisas é a seguinte: a matéria e o fundamento das coisas tendem a ser masculinos, mas a ideia, a aparência e a coisa em si tendem a ser femininas. Por outras palavras, os homens estão, mas as mulheres são.


É um exercício fabuloso. A casa é feminina mas o lar é masculino. O sexo e o amor são masculinos mas a paixão é feminina. O ciúme é masculino mas a inveja é feminina. A Pátria e a Nação são femininas mas o Estado e o Povo são masculinos. Os órgãos de soberania são masculinos (Governo, Presidente, Parlamento, Tribunais) mas os conceitos em que assentam são femininos (Democracia, Representação, Política, Filosofia). Aliás, quanto mais se persiste mais se percebe que tudo o que é masculino tende a ser um tanto ou quanto mais foleiro e mais básico do que o feminino. Não há nada a fazer. A diferença entre as mulheres e os homens continua infelizmente a ser a diferença entre o que importa e o que parece importar. Os homens dão a cara, mas são as mulheres as mais descaradas.


Está na cara. É tudo muito complexo. Com que cara se fica quando se explica a um estrangeiro que "ter má cara" não é o mesmo que ser "mal encarado", e que nem uma coisa nem outra tem a ver com o conselho "Encara bem os teus problemas" ?


Aliás, não é por acaso que as mulheres não podem ter “boa cara". Não é que não gostassem de ter. Mas é feio uma senhora "Ó Clotilde, estás com boa cara, pá! Faz quase tanto sentido como dizer que estão rijas ou para dar e durar. Às mulheres diz-se apenas que estão “bonitas” mesmo quando é mentira: De qualquer modo, mesmo que não seja, ficam sem saber se estão com boa cara, que é o que interessa.


À medida que se envelhece, vai-se percebendo que a grande divisória da humanidade não é entre os ricos e os pobres, não é entre os sábios e os analfabetos, não é entre os pretos e os brancos, não é entre os crentes e os infiéis, não é entre os antigos e os modernos, não é entre os esquerda e os de direita, não é entre os novos e os velhos, não é entre os rurais e os citadinos, não é entre os trabalhadores e os patrões, não é entre os compatriotas e os estrangeiros. Não. Não é. É entre as mulheres e os homens. Porque é que Deus fez um mundo. com dois sexos, se se estava mesmo a ver que não ia funcionar?


E porque é que tantas línguas agravaram o problema? A vantagem da língua inglesa é óbvia. É verdade: como é que se explica a um inglês a frase portuguesa "Ele há cada uma !"?


in K, nº 7, Abril de 1991

Comentários

BrunoS disse…
Este blog devia de ter um aviso aos internautas:
"Este Blog não cura Insónias, mas pode agravalas".

Como é suposto eu dormir agora que descobri isto?!

PS - Fantástico depoimento no programa "Portugal de...", de tirar o sono.
Anónimo disse…
Caro Miguel:

Afastada qualqer coincidência com Santana Lopes (ao dizer que não sabia para onde ia, mas sabia que ia andar por aí!), é bom saber que as boas coisas da vida nunca acabam.

Senti algo a renascer quando vi o livro do Quevedo na FNAC com aquela letra magnífica que tanto marcou um período da minha vida.

Aliás, deixe-me que lhe diga que ainda marca. Fui deserdado no dia que discuti com a minha mãe quando soube que tinha enviado para o farrapeiro toda a minha preciosa colecção das revistas "K". do primeiro ao último número. Até tinha dois número 1, com aquele capa magnífica a preto e branco com os miúdos da Casa do Gaiato (salvo o erro) a correr, de um longínquo mês de Outubro...

Foi, por isso, com enorme satisfação que descobri este canto (já saudoso do tempo do Pastilhas).

E peço-lhe com o mesmo tom que um dia me pediu a mim no prefácio do "Último Volume" para não ler o texto até ao fim, fechar o livro, pagá-lo na caixa e levá-lo para casa (qual homem/livro muito brasa!): Não vá embora! Deixe-se ficar. As coisas boas da vida nunca deviam desaparecer.

P.S. Também tive vontade de o mandar pró cara.... quando n'"A Minha Andorinha" escreveu o que escreveu sobre o meu Sporting. Lá por ser lampião (gigantesco defeito), não significa que a sua bilis tenha que efectuar descargas dessa natureza. Olhe, tenha uma conversa séria com o seu treinador pode ser que lhe meta juízo na cabeça!

Um abraço e um trago de Moskovskaya bem gelada, a roçar o licor...
Mercúrio disse…
voltem lá... sejam mais profícuos... preciso disto!!!!

ah ah ah
Anónimo disse…
Genial, como sempre...
Continuem... (de preferência com mais assiduidade)
Elza disse…
Olá!!
Estou passando por aqui para dar meus parabéns
pela sua indicação, ao prêmio blog 5 estrelas!
Seu blog é muito original, parabéns 2x!
rsrs...
=]
Margarida Girão disse…
O blog também morreu? : (
de.puta.madre disse…
"No Brasil, que é Portugal levado às últimas consequências,..."

Sou tão mal encarada que só mesmo esta frase para me descontrolar numa gargalhada. Confesso que posso contar as vezes em que ri sozinha e 97% foi o MEC. Muita saúde por aí.

PS.:Então esta coisa da vida nos correr mal, afinal, não é nada de pessoal. Fiquei contente e mais descansada e desenganada, finalmente. Vale.

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