O Lápis do Lopes


Por Graça Lobo

Fotografia Inês Gonçalves

Pedro Santana Lopes é uma daquelas figuras que andam sempre por perto. E quando menos se espera, emerge para dar largas à sua grande ambição. Este texto reflecte bastante da sua forma de pensar, da sua forma de agir, e como se relciona com alguns dos actores políticos mais proeminentes. Pedro Santana Lopes a frio...

Não é uma entrevista. É um duelo. Santana Lopes disse o que pôde. Está tudo aqui. Sem tirar nem pôr.
K: Como se sente nas suas novas fun­ções?
PEDRO SANTANA LOPES: Sinto-me bastante bem, mas ando muito cansado. Neste momento dá-me muito mais traba­lho do que eu julgava. A cultura é um departamento tão grande como os outros e só tem um membro do governo para tomar conta, enquanto os outros departamentos têm três e quatro... Eu nunca fui do género de funcionar a dizer “Ai, sabem, passo as noites no gabinete”, como às vezes os membros do governo dizem “Chego às sete da manhã e saio às onze da noite”. Detesto essa imagem porque acho que é uma imagem de falta de organiza­ção, mas de facto não consigo sair de lá cedo. Sei que a minha antecessora saía de lá às sete da tarde, pelo que me dizem e ela própria me dizia; quando aceitei o lugar pensei: “Bem, isto não deve ser... deve ser algo não muito exigente”. Mas estou absolutamente submerso, absolu­tamente submerso!
K: Eu já lhe vou perguntar, obvia­mente, sobre as linhas gerais da sua política cultural, ou da política cultu­ral do professor Cavaco Silva - não sei de quem é a política cultural deste governo, se é sua, se é dele. E iria talvez fazer-lhe outras perguntas, como por exemplo: acha que é um homem importante?
P.S.L. ...
K: P6r ser Secretário de Estado. Por ser Secretário de Estado tout court.
P.S.L. Depende do conceito de importân­cia. Julgo que sim, no sentido em que tenho responsabilidades importantes, que me estão atribuídas: as decisões que tomo mexem com a vida de muitas pessoas.
K: Acha que é mais importante do que, por exemplo, um actor? Para o seu país?
P.S.L. Para o meu país? Julgo que não. Do que um actor, julgo que não. Para mim a dimensão do contacto com o público, com muitas pessoas é que mede o sentido da importância.
K: Entre aspas.
P.S.L. ... entre aspas, daquilo que fazemos. O sentido em que se diz normal­mente que a pessoa é importante ... eu julgo que depende disso: depende do modo, do grau em que mexemos com a vida de outras pessoas e não só com a nossa. Um actor, um leitor, um escritor, um membro do governo, um cantor lírico, alguém que faça bem ao espírito, que mexe com o quotidiano - material ou não -, com a educação, com os locais de trabalho das pessoas, é certamente alguém importante para os outros.
K: Então porque é que tem tanto desprezo e mostra tanto desprezo - desprezo, dá­-me a ideia que o termo é esse - por certos criadores ... pelos criadores portu­gueses, pelos artistas portugueses que eu considero que são as pessoas mais impor­tantes, muito mais importantes que os políticos?
P.S.L. Mas porque é que acha que eu tenho desprezo, ou mostro desprezo?
K: A sua atitude é uma atitude de pro fundo desprezo, o seu ar é um ar arrogante e não citarei factos ocorridos comigo. Mas posso, por exemplo, perguntar porque é que teve a grande ousadia de não responder a uma carta que lhe foi enviada pelo poeta Mário Cesariny. Por acaso foi sobre o Centro Cultural de Belém, mas podia ser sobre a tasca da esquina; só que foi uma carta enviada pelo poeta Mário Cesariny, que é só o maior poeta português vivo, com o Herberto Helder. Porque é que Vossa Excelência teve a ousadia de não lhe responder?
P.S.L. Eu julgo, enfim, eu procuro tratar as pessoas sem estabelecer diferenças entre elas ... Eu procuro ... Devo dizer-lhe que tenho uma preocupação extrema em responder a toda a correspondência que me dirigem, e até costumam dizer - as galerias, as entidades que promovem as mais variadas iniciativas - que nunca houve um responsável pela cultura que telefonasse todos os dias a dizer se vai ou se não vai, a agradecer o convite. Agora há cartas, quando as pessoas me comuni­cam certos factos ... Entendo por vezes que as pessoas não querem respostas. E lembro-me dessa carta, foi quase no prin­cípio do exercício destas funções. Lem­bro-me que a registei devidamente, como já recebi outras cartas de grandes vultos da cultura portuguesa. A algumas cartas respondi, outras entendi que eram alertas que me eram dirigidos e agradeci ... Eu não sou ... Eu sei que tenho essa imagem, é algo que os meus amigos todos dizem, e que me surpreende imenso: tenho uma imagem de enorme antipatia - dizem até que em termos políticos é algo a que eu devo ter atenção -, de arrogância, de sobranceria, e de facto não sou nada assim. Procuro ser agradável, correcto com as pessoas. Não gosto de ser antipá­tico. Agora, sou uma pessoa muito fechada ao princípio e as pessoas depois quando me conhecem vêem que sou uma pessoa completamente diferente da imagem que acho que passa na televisão ou nos jornais. Todas as pes­soas que estão comigo me dizem: “Eu não podia consigo!”
Essa carta, lembro-me que a tomei como um alerta em relação à acção cultural. Li-a duas, três vezes, mas achei que era uma pretensão da minha parte pôr-me a escrever cartas a um grande vulto.
K: Sabia que era um grande vulto?
P.S.L. Sei. O Mário Cesariny sei que é um grande vulto ...
K: Conhece a poesia dele?
P.S.L. Conheço. Eu gosto muito de poesia, sabe? Mas ... não ... é por… cos­tumo ler o que ele escreve e às vezes ele não escreve só poesia. Costumo, não: leio, já li, mas ... não é por isso, não é por pensar. .. Por exemplo, recebi aqui há tempos uma carta do Manoel de Oliveira - não estou a fazer comparações - mas não tive a preocupação de lhe responder.
K: Diga lá o que vai fazer ao Museu de Etnologia.
P.S.L. O Museu de Etnologia, devo dizer para já que não gosto do nome. Acho que é um nome carregadíssimo, que ninguém ... é um nome excessivamente científico ­entre aspas - e que não é atractivo para as pessoas o irem visitar. Eu vou manter o diploma que o meu gabinete fez, revo­gando a integração do Museu de Arte Popular enquanto tal, como julgo que devo manter o Museu de Etnologia, embora talvez com outro nome. Eu não quero acabar com o Museu de Etnologia.
K: A quem é que quer agradar?
P.S.L. A quem é que quero agradar? Não tenho uma preocupação muito ...
K: Como Vossa Excelência disse uma vez que não queria agradar a Gregos e Troianos, quer agradar aos Gregos ou aos Troianos?
P.S.L. Os Gregos ...
K: Quem são os Gregos e quem são os Troianos?
P.S.L. Eu não os defino. Eles definir­-se-ão no fim da minha actuação como Secretário de Estado da Cultura.
K: É o que se verá em 1991.
P.S.L. Se ganharmos as eleições, se o senhor Primeiro-Ministro me quiser man­ter neste cargo, eu terei todo o gosto em continuar. Posso lhe garantir: é ... é um commitment, é um compromisso que tenho comigo próprio. Eu acho que são fasci­nantes os anos que aí vêm e vou enqua­drá-los como tal. E em todas as áreas: na cultura, no cinema, no teatro - o teatro é para mim um desafio enorme; já lhe disse isto no Dia Mundial do Teatro e você na altura não acreditou ...
K: O senhor não disse nada; quem disse tudo foi o Primeiro-Ministro. E disse tudo muito mal dito.
P.S.L. O senhor Primeiro-Ministro era a estrela do dia. A minha função era chegar-me para trás, como nos filmes ...
K: Desculpe, não estou nada de acordo! No que respeita à Cultura, a estrela - se é de estrelas que se trata - é o senhor! O senhor é que é o Secretário de Estado da Cultura. O senhor Primeiro-Ministro devia estar calado e não falar de coisas que não sabe. Estou convencida que Vossa Excelência talvez ache que sabe tudo; e está convencido que sabe, que tem ideias e soluções para os problemas enormes que existem. Agora de certeza que o senhor Primeiro-Ministro não só não sabe como não se sabe expri­mir. O que é grave!
P.S.L. Talvez o Primeiro-Ministro não tenha o mesmo grau de concentração e formação nessa área que cada um dos responsáveis desses departamentos. Eu ...
K: Porque é que está sempre calado? Desculpe interrompê-lo, mas tenho de o fazer.
P.S.L. Interrompa à vontade.
K: Porque é que está sempre calado ao pé do Primeiro-Ministro? Porque é que quando foi para o Parlamento Europeu estava sempre calado, com ar de menino bem comportado atrás do professor Cavaco Silva? Porque é que quando está o Primeiro-Ministro se cala, sendo o Secretário de Estado da Cultura? Porque é que deixou, porque é que admitiu que fosse o Primeiro-Ministro a dizer aquelas coisas no Dia do Teatro? E porque é que não nos disse o que pensa, porque é que não falou para nós? Não sabemos nada do que é que pensa! Percebe? Não o conhecemos de parte nenhuma. O senhor não faz parte do nosso universo. Caiu, apareceu-nos aqui e ficámos todos, quer no teatro quer nas outras áreas, a dizer “mas o que é isto que agora nos apareceu?” E pronto. Tem 33 anos, pão é nenhum velhadas horroroso, tem até bom aspecto, já é bom ...
P.S.L. Mas não pertenço ao universo ...
K: Não. Não tem nada a ver connosco.
P.S.L. Em relação a pertencer ao uni­verso, eu isso já tive a oportunidade de conferir e estudar... Nenhum dos meus colegas da cultura, nas Comunidades Europeias ... Eu não sou sempre uno, per­tenço ao que chama o universo ...
K: Mas não me respondeu: como é que caiu aqui?
P.S.L. Não sei, não é cair: foi o Primeiro­-Ministro que se lembrou, que me convi­dou. E eu devo dizer: a cultura ... Vamos lá ver. .. aliás o doutor Lucas Pires, na sua opinião um Ministro da Cultura exce­lente ...
K: Na minha opinião.
P.S.L. Pronto, na sua opinião. Ele é originário até das mesmas áreas do que eu; é um homem da Universidade, da Faculdade de Direito, da ciência política exactamente de onde eu sou.
K: Que curso é que tirou?
P.S.L. Direito.
K: E com que nota?
P.S.L. Acabei com 15, na Clássica de Lisboa. Fui sempre um dos melhores alunos do meu curso. Tenho quase pronta a minha dissertação de mestrado, para depois seguir para o doutoramento. Quando fui para o Governo da primeira vez tinha 29 anos; depois fui para o Parlamento Europeu.
K: É natural: tinha por trás o maior partido português ...
P.S.L. Eu sei. E foi como sabe: não falei na campanha porque o meu partido assim o entendeu - e eu achei bem, embora tenha sido um papel custoso, que eu fiz com todo o sacrifício. Mas eu acho que nos devemos sacrificar por causas colec­tivas, projectos colectivos. Trabalhei muito com o doutor Sá Carneiro. Eu era o seu assessor jurídico quando ele era Primeiro-Ministro. Era um gaiato, como se diz em certas zonas do país. O doutor Sá Carneiro, lembro-me, na altura dispensou a segurança e zangou -se com a polícia. E eu andei a fazer de guarda-costas dele; ele não aguentava, por causa da coluna, levar pancada nas costas quando estava no meio das pes­soas e eu, como era mais alto, lá andava sempre com os braços à volta, e adorava fazer o que ele me pedisse. Lembro-me que à noite - nunca escrevi isto; um dia hei-de escrever, tenho já muita história para contar, com quase 34 anos -, à noite ia ver o colchão dele, se ele tinha a tábua para as costas, e ia pôr-lhe um bocadinho de whisky que ele gostava e nunca me cairam os parentes na lama, pelo contrário. Com o professor Cavaco Silva (e para a maioria das pessoas era também um personagem caído do céu ou de outro sítio qualquer), andei a correr o país com ele, de ténis e calças de ganga, dentro do carro, escon­dido, a escrevinhar-lhe discursos e inter­venções de terra para terra, quando ainda não havia mais ninguém... Porque pouco depois passaram a ser milhares à sua volta e foi nessa altura que eu pedi para sair para o Parlamento Europeu. Estávamos a caminhar para ganhar e eu, quando vejo aparecer muita gente, gosto de me pôr de lado, gosto de fugir, de desaparecer. Detesto multidões; não é multidões, detesto é... ver chegar muitos, quando eles chegam com as malas, sabe qual é a sensação? Por isso fui para o Parlamento Europeu. E para pela primeira vez poder estar à vontade, pedi para sair do governo, que é coisa que ninguém sabe.
K: Acha que tem vocação para ser Secretário de Estado da Cultura?
P.S.L. Acho... acho. Acho que um político não deve pensar que é capaz de executar todo e qualquer cargo, embora eu entenda a política ou tenha uma visão que muitas vezes os inte­lectuais não gostam. Eu julgo que um político tem de ser alguém com uma formação razoá­vel ... uma formação e informação razoável e, depois deve ter uma capacidade de decisão e sentido político.
K: Acha que é um homem culto?
P.S.L. Considero-me um homem culto. Não... não... enfim. Não vou repetir afirmações incor­rectas que algumas pessoas fizeram quando eu tomei posse, mas não me considero um intelectual, nem o pretendo ser. Ainda no outro dia dizia por graça ao Primeiro-Ministro, “Não pense que me tornei num intelectual que nunca fui”. E ele olhou para mim com uma cara tipo “Agora, também este!”... Mas enfim... é o lugar que eu mais gostei de ocupar até hoje. É um lugar fascinante.
K: Desculpe interrompê-lo: que esperança nova é que Vossa Excelência veio trazer ao teatro ?
P.S.L. Não sei. Mas quanto mais não seja, eu defini e vou concretizá-lo, duas prioridades muito fortes na minha actuação: o património, a defesa do património...
K: E o teatro.
P.S.L. E o teatro. E até expliquei porquê. Você é que se calhar não lê o que eu digo. Aliás não tem obrigação nenhuma de ler...
K: Leio, leio! Quando vejo, leio. Não ando à procura, mas...
P.S.L. Eu disse-o já em entrevista, disse até em mais do que uma... mas talvez só em uma tenha vindo a público. Disse “O teatro é a área em que eu senti mais mágoa” - e já o disse ao Primeiro-Ministro, que aceitou a minha formula­ção -, eu comparo o estado em que está o teatro ao estado em que estão alguns dos nossos monumentos: estão a desagregar-se. No caso do teatro, é por falta de ânimo, que é o principal. As pessoas estão muito magoadas com os vários revezes que sucederam, segundo me têm dito, principalmente desde o 25 de Abril; olhe, mesmo o Raul Solnado dizia, no outro dia, ao Rui de Carvalho: “Temos mais saudades no que respeita à maneira como éramos tratados no antes 25 de Abril do que no pós-25 de Abril, porque de facto no pós-25 de Abril só fomos aproveitados, utilizados e espezinhados”.
K: Esses não têm nada de que se queixar.
P.S.L. Talvez não tenham, não sei, mas...
K: Esses, esses dois.
P.S.L. Pronto, esses dois. Mas eu sinto isto em todo o lado: sinto no teatro de revista, sinto no chamado teatro comercial...
K: Não há teatro comercial em Portugal. Era bom que houvesse.
P.S.L. Praticamente não há. É aquela área que eu julgo que tem mais do próprio povo. Eu julgo que o teatro, enquanto expressão artística oralmente transmitida também, julgo que é aquela que tem uma relação mais directa com a identidade cultural de cada povo e que é impossível a forma de expressão teatral... é difícil, é por isso que eu julgo que quando há uma grande diferença de tipo cultural de civili­zações, as representações teatrais não têm grande sucesso de uma civilização para outra. Isso ainda aconteceu na Europália, por exem­plo, com o teatro japonês em 1989. Era difícil. As pessoas têm uma maneira de se exprimir, de se falar, essa arte de representar tem de corresponder a quem... - enfim, estou a falar com quem sabe -, mas o representar é tradu­zir de facto a maneira de estar, de ser, de falar dos cidadãos, das pessoas, dos membros com­ponentes de uma comunidade, de um povo; isso não se transplanta de um sítio para o outro. E o teatro é o que está mais dependente, de facto, do modo como se mexe cada país em relação a cada área artística, e eu senti-o completamente abandonado e julgo que é uma constatação de facto: são os espaços, são os equipamentos, são as pessoas, está tudo num estado a precisar de intervenção, atenção e cuidado urgente.
Agora, vim encontrar um estado de coisas com que eu não concordava nada e demorei alguns meses a tomar algumas decisões porque tive imensos problemas de consciência, e continuo a ter, em pôr a minha assinatura em coisas com que não concordo e que vêm preparadas de há muitos anos mas que eu acho que não podem nem devem continuar a ser...
K: Quais, se não é indiscrição? Em relação ao teatro, que é onde estamos agora.
P.S.L. Em relação ao teatro, posso dizer-lhe desde já que acho que não faz sentido o modo como está articulado o Teatro Nacional D. Maria e a Direcção-Geral de Acção Cultu­ral. Foi algo que já senti, acho que não faz sentido termos um teatro nacional que funciona por si, para um lado, e termos uma entidade que toma conta ou lida com o resto das compa­nhias, completamente por outro lado.
K: Então como é que havia de ser?
P.S.L. Eu julgo que tem de haver uma enti­dade... O Teatro D. Maria II deve estar inte­grado no Teatro Nacional numa... entidade.
K: Isso é perigosíssimo, sabe?
P .S.L. O que é que é perigosíssimo?
K: É perigosíssimo em relação a um Teatro Nacional, que seja uma directora geral ou um director geral a ter a responsabilidade do que se possa passar. Não acha que os teatros, nacionais ou não, devem ter à frente, como principais responsáveis, as pessoas do teatro?
P.S.L. Não, eu não ponho isso... Acho que o director geral pode ser uma pessoa do teatro. A minha ideia é que haja uma combinação de pessoas com os dois tipos de perfis: pessoas que sejam do meio e - acho que fazem sempre falta - pessoas que não sejam do meio. Porque estão mais à vontade para decidir face aos grupos que existem. Porque é como em tudo, na Cultura é como em tudo: também no meio da engenharia, no meio dos advogados, há os seus grupos, há as suas listas, cada um tem os seus amigos que cristalizam ao longo dos anos. E se cada um deles é chamado por vezes a decidir, a justiça não é tão grande como a que se pode obter de outra maneira. O que não faz sentido O director do Teatro Nacional hoje em dia… O Teatro Nacional pode e deve ser um teatro com um elenco permanente, como é o nosso Teatro Nacional, o que não acontece em todos os teatros nacionais... sendo um teatro com um elenco permanente, procurando que seja um pólo dinamizador de uma actividade que está quase morta. E está quase morta porque os espaços estão quase mortos, os equipamentos podres, não existem. Eu julgo que este ano vamos ter, de uma vez por todas, de canalizar muita verba para o investimento em espaços e equipamentos.
K: Então e depois o que é que acontece aos actores, aos encenadores, aos cenógrafos por­tugueses - que ainda há alguns bons, não somos todos péssimos - se o senhor vai investir o dinheiro a arranjar os teatros todos? O que é que a gente vai fazer, para onde é que nos manda?
P.S.L. Mas não acha... Para já responda: não acha que se tem de investir nos espaços?
K: Acho que o senhor tem de ir buscar mais dinheiro.
P.S.L. Ah! Pois, o problema é esse! Pudera eu... Estou-lhe a dizer... se eu tivesse...
K: Acho que tem de ser mais bem aconse­lhado!
P.S.L. Se eu tivesse o orçamento... Se tivesse o orçamento que tinha este ano, não tinha hipótese de fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Eu não sou muito aconselhado, sabe"
K: Sei.
P.S.L. Não é que não ouça muito as pessoas.
K: Eu sei que não é nada aconselhado. Eu sei que não gosta que o aconselhem.
P.S.L. Tenho ouvido muito as pessoas, mas tenho a mania de decidir sozinho. Não quer dizer que não procure ouvir. Não parto nada do princípio que eu sei. Não parto nada desse estado de espírito, parto de contrário: eu não sei
K: Então se não sabe, quem é que o informa?
P.S.L. Não... Eu peço os documentos, peço estudos e depois leio; leio, estudo, analiso, vou aos sítios. É o que as pessoas me dizem.
K: Eu, de facto, já percebi que a sua cabeça anda muito depressa. Podemos fazer aqui uma pausa. Estou a maçá-lo"?
P.S.L. Não está a maçar nada. Eu gosto muito de conversar.
K: Gosta?
P.S.L. Eu? Até às tantas da manhã, todas as noites. Largo daqui...
K: Nos Stones?
P.S.L. Mas não só. Também...
K: Sobretudo nos Stones?
P.S.L. Sobretudo nos Stones, porque eu gosto muito de música romântica.
K: Quando é que lê?
P.S.L. Leio normalmente quando me deito. Leio muito já deitado e leio... Depende; olhe, hoje em dia leio muito no carro, quando ando com motorista, que é algo que eu tenho desde a primeira vez que fui para o governo. Não é por vaidosice, acho que é dos investimentos mais rentáveis que existem na civilização actual: poder ter alguém que conduza o carro, porque poupa imenso tempo.
K: Pois, pois.
P.S.L. Pois é, mas leio muitas coisas ao mesmo tempo. Sou incapaz de estar a ler só um livro. Leio muitas coisas ao mesmo tempo e não as leio de seguida.
K: Já me vai dizer o que é que lê, que eu gostava de saber. Mas o que é que me disse que vai escrever?
P.S.L. Eu não disse nada.
K: Disse, disse.
P.S.L. ...
K: Você escreveu um livro.
P.S.L. Publiquei dois, embora tenha escrito um. Eu não quero nem escrever livros muito depressa nem plantar uma árvore muito depressa, sou um bocado ...
K: O que é que quer, então?
P.S.L. Tenho 33 anos, quero ir fazendo aquilo que gosto, acho que deve ser a nossa procura na vida. Já começo a sentir a necessidade de escrever... não quero chamar memórias, mas de pôr no papel... porque acho que nesta altura entramos noutra fase da vida.
K: O que é que acha que faz de si um homem perigoso, de quem, politicamente, se tem medo, de quem o professor Cavaco Silva tem medo?
P.S.L. Sou muito detestado, não tenho dúvida nenhuma sobre isso; sente-se em sectores da Imprensa.
K: Importa-se com o que diz a imprensa?
P.S.L. Importo-me.
K: Acha que é injusto? Acha que está a ser maltratado nos jornais?
P.S.L. Até agora acho que a imprensa está a ser muito simpática comigo e com o Secretário de Estado da Cultura. A generalidade das pessoas, o que me tem dito é que eu - pode não ser assim - dei um pouco a volta às coisas desde que entrei. As pessoas, em entrevistas e con­versas, têm-me dito que dei um pouco a volta no ambiente quando entrei na Cultura. O ambiente hoje é completamente diferente. As pessoas vinham à espera que eu viesse fazer não sei que acções de selvajaria política e a pouco e pouco estão agradavelmente surpreendidas com o modo como tenho exercido as minhas funções.
K: Volto à minha pergunta: porque é que é um homem politicamente perigoso para o professor Cavaco Silva?
P.S.L. Não, para ele acho que não sou.
K: O que é que quer? Quer ser Primeiro­-Ministro? Acha que vai ser Primeiro-Ministro?
P.S.L. Ah, não sei, não faço ideia.
K: É rico?
P.S.L. Não, não sou. O bem que tenho, o único, é esta casa que vê e a propriedade em que está.
K: Mas vive bem, relativamente?
P.S.L. Olhe, tenho encargos. Basta ter esta propriedade no Alentejo para ter vários encargos. Posso dizer-lhe, as minhas contas bancárias - que tenho em dois ou três bancos - ou estão a zero ou estão negativas. Não tenho dinheiro hoje em dia para as responsabi­lidades que tenho por mês. Pago uma renda de casa de 100 contos - não arranjei mais barato - mas tenho uma casa razoável no Areeiro, num prédio de 30 ou 40 anos.
K: Onde é que vivia antes? Vivia em Lisboa?
P.S.L. Vivi na Costa de Caparica, vivi em Carcavelos, vivi na Quinta da Luz, porque como adoro o mar, sempre que posso estou ao pé do mar. Não tenho mais bem nenhum. Não tenho mais conta nenhuma. Detesto ter contas a prazo, nunca tive dinheiro para isso. Só ganhei dinheiro uma vez: foi no Parlamento europeu. De facto, aí ganha-se muito bem.
K: E um social-democrata convicto?
P.S.L. Sou um social-democrata de profunda inspiração liberal, profunda inspiração liberal. Mas devo dizer-lhe que sou muito relativista em matéria de ideologias e acho que elas não acabaram mas estão todas em substituição. Neste momento, considero-me em fase de interlúdio, em matéria de ideologia. Também acho que todas elas... por exemplo: esta moda do liberalismo, eu acho que é uma moda.
K: Qual o actor ou actriz com quem o senhor almoça, ou tem alguma relação de amizade?
P.S.L. Almoçar ou jantar não costumo fazer muito, mas aquele com quem tenho uma rela­ção mais próxima e há mais tempo, embora hoje não muito frequente, é o Herman José.
K: Ah! E pintor?
P.S.L. Pintor... Relação próxima, que me lembre, com nenhum. Há o Saramago da pin­tura, o Rui Manso.
K: E escritor?
P.S.L. Tenho ali um quadro dele de que gosto muito.
K: E escritor?
P.S.L. Escritor com que me dê? Nenhum.
K: E músico?
P.S.L. Estou a pensar nos meus amigos... se algum deles é músico ou escritor...
K: Não, um músico português com quem o senhor almoce ou jante, com quem goste de conversar, que seja das suas relações.
P.S.L. É um músico controverso, mas é uma pessoa que é mais das minhas relações (embora isto levante especulações com os pro­blemas que há na música hoje em dia); é o Adriano Jordão. É com ele que tenho uma relação mais próxima.
K: Quer dizer, não tem relações nenhumas de amizade?
P.S.L. Hum...
K: ...ou de intimidade ou de ...nada, com ninguém que faz parte do universo do qual o senhor é Secretário de Estado. Estou a dizer bem ou não? Está de acordo comigo?
P.S.L. Estou... está a dizer bem, mas pense no seguinte: eu tenho a minha maneira de ser e sempre foi... como não tenho nenhum amigo na política a não ser o Durão Barroso que andou comigo na Faculdade e que foi para a política.
K: E o Antóno Pinto Leite e o Marcelo.
P.S.L. O Marcelo Rebelo de Sousa. Sim, mas o Marcelo, como sabe, é um caso de amizade muito especial. Com toda a gente, não é comigo. Eu acho que ele sabe ser amigo das pessoas, mas não é um amigo de todos os dias
K: Mas onde eu quero chegar é que o senhor não tem nenhuma relação particular de amizade com ninguém que faz parte do universo do qual é Secretário de Estado, percebe?
P.S.L. Sim... Eu não faço tenções de mudar nunca, nunca fiz. Dizia-lhe há pouco, não mudei minhas amizades por causa da política, nem pelos cargos que exerço. É pelas circunstâncias da vida. Jogo futebol aos sábados de manhã com as mesmas pessoas com que jogo há vinte anos... Não frequento os meios... houve uma época, em que me atribuíam um excessiva preocupação porque eu apareci muito... O meu amigo Marcelo Rebelo de Sousa punha-me constantemente na Olá! Então, as pessoas tinham a ideia que eu adorava festas sociais, que adorava jantares, cocktails ou recepções, que é uma coisa a que vou tão pouco quanto possível. Gosto muito de dançar e gosto muito da noite. Gosto imenso de estar acordado quando ninguém está. De andar em Lisboa, quando Lisboa está a dormir.
K: O senhor é Secretário de Estado da Cultura está em contacto com um universo mais interessante, mais rico, com as pessoas mais fascinantes que o seu país tem. Como é que não aproveita isso? Mesmo para si, pessoalmente
P.S.L. Eu detesto que as pessoas tenham o sentimento que estou a utilizá-Ias ou às funções em que estou. Quero continuar exactamente a mesma pessoa e a fazer o que fazia. Só tenho uma obrigação: é procurar ler muito mais, estudar muito mais, informar-me muito mais sobre aquelas que são as minhas áreas de preocupação. É a única mudança. Detesto que as pessoas pensem “agora este aparece ou telefona. É Secretário de Estado da Cultura aproveita para aparecer em meios que nunca frequentou ou para se dar com pessoas que nunca lhe ligaram.” Detesto que pensem isso.
K: Acha que as pessoas são assim tão más?
P.S.L. Sim. Acho que as pessoas são más.
K: Acha que as pessoas são más?
P.S.L. Acho. O Português diz sempre mal. É maldizente por natureza. Dou-lhe um exemplo, a outro título: quando o doutor Sá Carneiro ­que foi a pessoa com quem tive uma relação humana das mais interessantes da minha vida - me convidou a trabalhar com ele, era a pessoa com quem eu mais queria trabalhar. Tinha vinte e dois ou vinte e três anos na altura, mas nunca... Porque isso é uma coisa que imponho a mim mesmo, interiormente... e lutei por ele, lutei na altura contra os Inadiá­veis, fui ao congresso do partido fazer um discurso... Mas lembro-me que quando passava por ele - e apesar de ter uma admiração louca por ele, já eu era presidente da Associação Académica de Direito -, nunca olhei para ele. Detestava que ele pensasse que me estava insinuar ou a fazer-me engraçado, ou a aproxi­mar-me para tentar. .. Nunca! Nem sequer - ­tenho a consciência tranquila - dirigi os olhos para ele. Até o dia em que me chamou e disse: “Gostei muito do que você disse e gostava que a partir de hoje trabalhasse sempre comigo. E pronto, aí sim, fiquei a trabalhar com ele. Portanto funciono assim com as pessoas. Se têm a gentileza de me convidar, eu normal­mente vou sempre. Agora, não convidam, não apareço. Sigo muito o ditado português “À boda e baptizado, não vás sem ser convidado”.
K: E casado?
P.S.L. Sou.
K: Fala inglês e francês?
P.S.L. Inglês, francês e alemão.
K: Ah. E leu Proust?
P.S.L. Já li há muitos anos, já não me lembro: É como se não tivesse lido.
K: Foi os Ensaios que leu?
P.S.L. Já não me lembro. Lembro-me que lia muito essas empreitadas quando andava no liceu e estudava filosofia. Dedicava-me a elas de alma e coração.
K: E Joyce? Leu o Finnegan’s Wake e o Ulisses?
K: Não?! O Secretário de Estado da Cultura não leu o Ulisses nem o Finnegan’s Wake?
P.S.L. Não, não li.
K: Qual foi o último livro que leu?
P.S.L. Não há último.
K: Português?
P.S.L. Ah, o último português? O último português é impróprio que se diga, mas foi uma releitura das Memórias de Salazar do Franco Nogueira. E estou a ler também... li o do, como é que se chama... do Miguel Fernandes Jorge...
K: Qual foi a última peça que viu em Portugal, sem ser o What Happened... ?
P.S.L. Sem ser essa, além do Renaissance Theater...
K: Gostou do Renaissance?
P.S.L. Gostei, gostei ...
K: Gostou do Rei Lear e não gostou do Midsum­mer’s night ...
P.S.L. Gostei, gostei. Infelizmente só fui à estreia, depois perdi o Rei Lear, que foi uma estupidez.
K: Que é que pensa do teatro independente? Qual é o grupo que acha mais eficaz, mais profissional?
P.S.L. Isso acho que não devo dizer, nem fazer comparações nas funções em que estou, nem dizer qual é o pintor de que mais gosto ... gosto bastante de pintura, mais do que es­cultura, devo confessar. Embora haja escul­tores de quem sou fã. O Rodin fascina-me, mas...
K: João Cutileiro, gosta?
P.S.L. Gosto, gosto do Cutileiro, embora ...
K: Pessoas de esquerda, tem algum precon­ceito contra elas?
P.S.L. Não, não tenho nenhum.
K: Gosta que apareçam com iniciativas ou gosta de ter as suas próprias iniciativas?
P.S.L. As duas coisas. Têm-me impressio­nado imenso o número de iniciativas... Nunca pensei que houvesse tantas. Isso tem si­do a maior surpresa para mim nestas fun­ções
in K, nº1, Outubro de 1990

Comentários

Anónimo disse…
Será que 17 anos depois já leu "Ulisses", essa "empreitada"??

Obrigado pelo post!
ondamarela disse…
Ai se fosse hoje, se fosse hoje... À 5ª pergunta já a K estava a falar sozinha...
PedromcdPereira disse…
Eiapá! Que malha...Ufff
... disse…
A isto é que eu chamo uma grande entrevista
Hugo Morgan disse…
esta graça lobo andava a precisar de levar tau tau
luis a. disse…
um autêntico clássico...

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