Doce palavra vingança
O problema é que se vive a mania da civilização, com tudo o que a ela está pegajosamente agarrado: a dentadura sorridente tem de estancar a fúria, as discórdias têm de ser esquecidas nos locais de trabalho porque senão a cotação da bolsa desmaia, a música tem de se ouvir baixo porque há vizinhos em cima, os namoros acabam-se com prendas em vez de tiros, e por aí fora numa insensatez humana que não faz sentido nem aproveita ninguém a não ser o abstracto bem estar social que nos oprime. Quem se enfurece tende a acalmar o tumulto que alguém lhe colocou no corpo.
Acontece que não é fácil descobrir em nós onde se situa essa semente de vingança que nos definha e nos mata pouco a pouco: se nos olhos porque ver quem nos quer mal é o pior de tudo, se na memória porque as recordações daquilo que o inimigo nos fez nos aniquila aos poucos, se nos ouvidos porque ouvir falar dele é doloroso, se noutros cantos escuros do nosso corpo que ainda se sentem traumatizados apesar de já ter passado algum tempo desde o momento fatal. E se a localização da fonte não é fácil, este facto deve-se apenas a uma razão: tal como sucede com as hemorróidas, que estacionam metodicamente numa única área, a vingança assenta arraiais num ponto concreto e vital, o coração. E, ao contagiar esse órgão fundamental, contamina todos os nossos sentidos, ataca o nosso passado e presente e alastra descontroladamente até que tenhamos coragem de tomar algumas medidas em relação à pessoa que nos atirou para esta vida de miséria. E então é tempo de tomar balanço, rever estratégias, localizar o inimigo no espaço, limpar as armas e declarar-lhe guerra até que seja reposta a justiça.
Não há que ter medo da fúria, das más maneiras, do escândalo social, dos parentes estatelados na lama ou da cabeça do nosso cavalo de estimação que um qualquer mafioso colocou na nossa cama para nos avisar.
Nada como a fuga em frente para resolver a questão. Afinal de contas, uma vingança não é mais do que uma retribuição, um conceito de compensação vindo de tempos imemoriais em que as únicas regras utilizadas eram a da Talião e a "não faças aos outros o que não queres que te façam a ti". É simples de entender porque, justamente, se baseiam em comportamentos tão naturais como a reciprocidade, igualdade de tratamento, pecar e expiar, autoridade e prestígio, respeito e honra.
Não há que ter vergonha, não há que tentar controlar os ímpetos revanchistas, exactamente porque é um dado humano inato e que, por isso, existe em praticamente todas as culturas. Se optar por difamar alguém ou pegar-lhe fogo à casa, não tem de se assustar com a violência dos seus actos ou com a natureza latina e impetuosa que coabita consigo. É que, comparado com aquilo que outros povos fazem para restabelecer a justiça pelas suas próprias mãos, o seu comportamento é quase angelical. Há tempo, os jornais trouxeram o caso da prisão de Pulau Senang, nas proximidades de Singapura. Houve uma revolta e, embora os detidos tivessem controlado a situação num primeiro momento, não fugiram imediatamente preferindo devolver aos guardas uma variante dos suplícios de que foram alvo durante o cativeiro. Esmeraram-se em actividades lúdicas: castraram-nos, arrancaram-Ihes os olhos e submeteram-nos a outras carícias idênticas. O tempo que levaram a consumar a vingança foi tanto - sem dúvida porque, naquele momento, sentiram que a liberdade podia esperar mas a justiça não - que as autoridades conseguiram inverter as posições e retomaram o controlo da situação. Escusado será dizer que os revoltosos foram executados sumariamente nos dias que se seguiram, enforcados seis de cada vez nas caves da prisão.
Como esta, há um intocável número de histórias nos registos da humanidade, precisamente porque o mundo está cheio de gente pouco disposta a deixar que o seu caso pessoal seja entregue aos tribunais. Entre os Moussey dos Camarões, por exemplo, o carácter de um homem é julgado de acordo com a quantidade de inimigos que ele tiver morto. E se pretender casar, o problema dos filhos, da noiva e da segurança social são insignificantes comparados com a pergunta ritual que o sogro lhe vai fazer nas vésperas da união: "Afinal quem é que mataste para merecer a mão da minha filha?"
Quanto aos Manobos de Mindanau, nas Filipinas, vão para a floresta depois de um membro da família ter morrido. Não porque se queiram isolar em silêncio longe da multidão ululante, mas porque querem vingar a morte do seu ente querido, o que conseguem quando cortam o pescoço ao primeiro incauto que lhes aparecer pela frente. A prática é idêntica entre os Maori e entre primitivos da Nova Zelândia.
Mesmo nas culturas mais próximas e entendíveis, a regra é a da retaliação pura e simples, seja no Código de Hamurabi, seja nas tábuas de Talião, seja nas escrituras hebraicas, nas leis babilónicas ou nos códigos gregos. Isto para já não falar nos casos de vingança pessoal. Sócrates foi envenenado pelos juízes, César foi apunhalado pelos senadores, Cristo foi atraiçoado pelos lacaios, Mozart por Salieri; Orwell retribuiu com os escritos todas as maldades que lhe fizeram em criança ("the desire to get your own back on grownups who snubbed you in childhood"), Juvenal em relação à decadência do império romano, Lutero face aos desvios papais, o Terceiro Reich em relação às cláusulas do Tratado de Versalhes, Nietzsche contra os cristãos, o Morcego Vermelho e os gangsters de Patopolis. A vingança é natural, intemporal, humana, aceitável e, como diz o provérbio, muito melhor quando servida fria.
NASCIDOS PARA VINGAR
Alguns dos maiores estrategas da vingança, verdadeiros heróis de uma espécie prestes a extinguir-se: os que pensam com o coração.
CAIM - D. PEDRO - PATACÔNCIO - KARL MARX - OTELO SARAIVA DE CARVALHO - CINDERELA - EDMOND DANTES - CONDE DE MONTECRISTO - AL CAPONE - CALíGULA - MARQUÊS DE POMBAL - BATMAN - CARRIE - DON CORLEONE - ESTALINE - CHARLES MANSON - RAMBO - LI PENG - A DEUSA NEMÉSIS - KING KONG - POVO ROMENO - GALILEU - ISRAELITAS - PALESTINIANOS - SALIERI - JEANNE MOREAU - A NOIVA QUE ESTAVA DE LUTO - VíRUS DA SIDA - ASTERIX - ADOLF HITLER - ELI WIESEL - MOBY DICK - CAPITÃO AHAB - A AMANTE QUE ERA MULHER DO LADRÃO E AMIGA DO COZINHEIRO - TALIÃO - JACOBINOS - INDIANA JONES - KU KLUX KLAN – NORAS – SOGRAS - ÁTILA - O HUNO - A FORMIGA DE LA FONTAINE – ORESTES – J. R. EWING – ÉDIPO – KHOMEINI – SHAKESPEARE - ROBIN HOOD – ELEFANTES – DIABO - DEUS.
in K, nº 2, Doce palavra vingança, Rui Henriques Coimbra e Carlos Quevedo, Novembro de 1990
Acontece que não é fácil descobrir em nós onde se situa essa semente de vingança que nos definha e nos mata pouco a pouco: se nos olhos porque ver quem nos quer mal é o pior de tudo, se na memória porque as recordações daquilo que o inimigo nos fez nos aniquila aos poucos, se nos ouvidos porque ouvir falar dele é doloroso, se noutros cantos escuros do nosso corpo que ainda se sentem traumatizados apesar de já ter passado algum tempo desde o momento fatal. E se a localização da fonte não é fácil, este facto deve-se apenas a uma razão: tal como sucede com as hemorróidas, que estacionam metodicamente numa única área, a vingança assenta arraiais num ponto concreto e vital, o coração. E, ao contagiar esse órgão fundamental, contamina todos os nossos sentidos, ataca o nosso passado e presente e alastra descontroladamente até que tenhamos coragem de tomar algumas medidas em relação à pessoa que nos atirou para esta vida de miséria. E então é tempo de tomar balanço, rever estratégias, localizar o inimigo no espaço, limpar as armas e declarar-lhe guerra até que seja reposta a justiça.
Não há que ter medo da fúria, das más maneiras, do escândalo social, dos parentes estatelados na lama ou da cabeça do nosso cavalo de estimação que um qualquer mafioso colocou na nossa cama para nos avisar.
Nada como a fuga em frente para resolver a questão. Afinal de contas, uma vingança não é mais do que uma retribuição, um conceito de compensação vindo de tempos imemoriais em que as únicas regras utilizadas eram a da Talião e a "não faças aos outros o que não queres que te façam a ti". É simples de entender porque, justamente, se baseiam em comportamentos tão naturais como a reciprocidade, igualdade de tratamento, pecar e expiar, autoridade e prestígio, respeito e honra.
Não há que ter vergonha, não há que tentar controlar os ímpetos revanchistas, exactamente porque é um dado humano inato e que, por isso, existe em praticamente todas as culturas. Se optar por difamar alguém ou pegar-lhe fogo à casa, não tem de se assustar com a violência dos seus actos ou com a natureza latina e impetuosa que coabita consigo. É que, comparado com aquilo que outros povos fazem para restabelecer a justiça pelas suas próprias mãos, o seu comportamento é quase angelical. Há tempo, os jornais trouxeram o caso da prisão de Pulau Senang, nas proximidades de Singapura. Houve uma revolta e, embora os detidos tivessem controlado a situação num primeiro momento, não fugiram imediatamente preferindo devolver aos guardas uma variante dos suplícios de que foram alvo durante o cativeiro. Esmeraram-se em actividades lúdicas: castraram-nos, arrancaram-Ihes os olhos e submeteram-nos a outras carícias idênticas. O tempo que levaram a consumar a vingança foi tanto - sem dúvida porque, naquele momento, sentiram que a liberdade podia esperar mas a justiça não - que as autoridades conseguiram inverter as posições e retomaram o controlo da situação. Escusado será dizer que os revoltosos foram executados sumariamente nos dias que se seguiram, enforcados seis de cada vez nas caves da prisão.
Como esta, há um intocável número de histórias nos registos da humanidade, precisamente porque o mundo está cheio de gente pouco disposta a deixar que o seu caso pessoal seja entregue aos tribunais. Entre os Moussey dos Camarões, por exemplo, o carácter de um homem é julgado de acordo com a quantidade de inimigos que ele tiver morto. E se pretender casar, o problema dos filhos, da noiva e da segurança social são insignificantes comparados com a pergunta ritual que o sogro lhe vai fazer nas vésperas da união: "Afinal quem é que mataste para merecer a mão da minha filha?"
Quanto aos Manobos de Mindanau, nas Filipinas, vão para a floresta depois de um membro da família ter morrido. Não porque se queiram isolar em silêncio longe da multidão ululante, mas porque querem vingar a morte do seu ente querido, o que conseguem quando cortam o pescoço ao primeiro incauto que lhes aparecer pela frente. A prática é idêntica entre os Maori e entre primitivos da Nova Zelândia.
Mesmo nas culturas mais próximas e entendíveis, a regra é a da retaliação pura e simples, seja no Código de Hamurabi, seja nas tábuas de Talião, seja nas escrituras hebraicas, nas leis babilónicas ou nos códigos gregos. Isto para já não falar nos casos de vingança pessoal. Sócrates foi envenenado pelos juízes, César foi apunhalado pelos senadores, Cristo foi atraiçoado pelos lacaios, Mozart por Salieri; Orwell retribuiu com os escritos todas as maldades que lhe fizeram em criança ("the desire to get your own back on grownups who snubbed you in childhood"), Juvenal em relação à decadência do império romano, Lutero face aos desvios papais, o Terceiro Reich em relação às cláusulas do Tratado de Versalhes, Nietzsche contra os cristãos, o Morcego Vermelho e os gangsters de Patopolis. A vingança é natural, intemporal, humana, aceitável e, como diz o provérbio, muito melhor quando servida fria.
NASCIDOS PARA VINGAR
Alguns dos maiores estrategas da vingança, verdadeiros heróis de uma espécie prestes a extinguir-se: os que pensam com o coração.
CAIM - D. PEDRO - PATACÔNCIO - KARL MARX - OTELO SARAIVA DE CARVALHO - CINDERELA - EDMOND DANTES - CONDE DE MONTECRISTO - AL CAPONE - CALíGULA - MARQUÊS DE POMBAL - BATMAN - CARRIE - DON CORLEONE - ESTALINE - CHARLES MANSON - RAMBO - LI PENG - A DEUSA NEMÉSIS - KING KONG - POVO ROMENO - GALILEU - ISRAELITAS - PALESTINIANOS - SALIERI - JEANNE MOREAU - A NOIVA QUE ESTAVA DE LUTO - VíRUS DA SIDA - ASTERIX - ADOLF HITLER - ELI WIESEL - MOBY DICK - CAPITÃO AHAB - A AMANTE QUE ERA MULHER DO LADRÃO E AMIGA DO COZINHEIRO - TALIÃO - JACOBINOS - INDIANA JONES - KU KLUX KLAN – NORAS – SOGRAS - ÁTILA - O HUNO - A FORMIGA DE LA FONTAINE – ORESTES – J. R. EWING – ÉDIPO – KHOMEINI – SHAKESPEARE - ROBIN HOOD – ELEFANTES – DIABO - DEUS.
in K, nº 2, Doce palavra vingança, Rui Henriques Coimbra e Carlos Quevedo, Novembro de 1990
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