Forçosamente Livres
«A crise do Ocidente tem de inédito o facto de ser, no fundo, uma crise da filosofia. (...) A inverosimilhança e a decrepitude teóricas são, como todos sabem, o fulcro do mal-estar da União Soviética. E o Mundo Livre não fica muito atrás.»
ALLAN BLOOM, The Closing of the american mind
NUM debate recente sobre a condição cadaverosa do regime democrático-totalitário cubano (1), voltou a falar-se na tese Fukuyamiana do «Fim da História». De tanto citada, arrisca-se esta a parecer uma doutrina póstuma. Mas não é. Para muitos eggheads de Washington, D.C., trata-se de uma das primeiras bases teóricas do neoliberalismo triunfante.
Colocando no mesmo saco o pan-historicismo idealista e materialista, Fukuyama diz simplesmente que uma ideia política, o liberalismo, e um sistema político, a democracia, - triunfaram sobre os seus arqui-inimigos e arquétipos negativos, o comunismo e os regimes do chamado socialismo real.
A história como dialéctica de experiências teria assim acabado - «por agora», diz Ironicamente um crítico alemão de Francis Fukuyama - e o caminho abrira-se para um novo primata, o Homo Liberalis. Este homem é simultaneamente um animal consumista, agarrado à civilização hedonista, e um ser livre, feliz, autónomo e identificado. A sua liberdade, como num sistema Rawlsiano, conjuga-se racionalmente com as parcelas de liberdade dos outros homens. Fukuyama parte de uma verificação que já havia sido feita por muitos teóricos - e teólogos - a seguir a Hiroshima A Dos Mil Sóis. A seguir a 45 disse-se que todos os regimes aceitaram a democracia como regime, ao menos prestando-lhe lip service, convertendo-se às suas fórmulas, discursos e mitos. Por mais tirânico que um modelo fosse, após a queda do Eixo, diria no máximo ser ademocrático, mas nunca antidemocrático. Hoje o mesmo se passa com o liberalismo, todos os sistemas - desde o Brasil adiado de Collor ao Irão reciclado de Rafsanjani - declaram prezar, ao menos em espírito, a liberdade santíssima.
Mas assim como a seguir à Segunda Guerra, a «democracia» se encheu de apêndices e qualificativos - foi «burguesa» e «constitucional», «popular» e «social»,«económica» e «política», «parlamentar» e «musculada», «socialista» e «capitalista», e aí por diante - que traduziam as reais ambiguidades envolvidas na aplicação do modelo, também a partir de hoje podemos vir a ter a «liberdade» interpretada à maneira do pa- trão e do freguês. A liberdade, oui, mais... E os espíritos mais negros, menos crentes na capacidade redentora da experiência acumulada pelos povos, raciocinam noutras veredas: se a liberdade se absolutiza, podem crescer as desigualdades, e com estas crescem as sementes de revolta dos mal-sucedidos contra os felizes ou contra os hábeis. Ou seja, da liberdade total podem brotar os germes de novas tentações igualitárias e de Santas Alianças entre os falhados do planeta.
Os tumultos na cidade dos Anjos, na soalheira e tecnológica Califórnia, podem já ter sido um alarme nessa direcção, dizem os mesmos espíritos. E outros bons espíritos relembram coisas piores. Lembram ao Ocidente, por exemplo, o discurso de aceitação do prémio Nobel da Literatura por Soljenitsine, em que o sobrevivente do Gulag e do Pavilhão dos Cancerosos alertava para o excessivo optimismo de uma civilização livre mas moralmente decadente e intelectualmente entorpecida. Já Allan Bloom, no seu clássico anti-social democrata, que fez furor entre os revisionistas simpáticos de Leo Strauss, Nozyck e Ayn Rand, alertava para isso: o relativismo axiológico, a perda do pensamento arquetípico, o fim da era das visões do mundo pode levar a uma libertação mas também a uma perda.
A uma libertação, desprendendo o homem-súbdito da sua dependência quase narcótica em relação ao Estado e às ideologias redentoras. A uma perda, por poder fazer soçobrar o mesmo homem num ciclo infernal de dúvidas, angústias, egoísmos e solipsismos predadores. Diz-se que esta é uma era de incertezas. Mas se é assim, como se pode ter a certeza disso?
Diz Bloom que a degeneração do modelo ideológico sovietista esteve por detrás daquilo que viria a ser o colapso imperial que nem Gorbachev conseguiu suster. Mas refere ainda que outros «ismos», se podem seguir, no ruir das certezas absolutas.
Será o próximo «ismo» a incinerar-se o «liberalismo»? Quereremos nós ter liberdade para o dizer e para assistir a essa morte? Que tirano interior nos açulará então os cães negros da intolerância, seja ela romântica ou racional?
O mito do fim das certezas toma-nos incapazes de responder. Como Cratilo, o céptico, podemos apenas mover os dedos, pois as nossas palavras já não servem para descrever a realidade. Nem para descrever a ilusão.
Lá fora podem soar já as sirenes do Fahreneit 451. Mas ninguém liga. O homem descrente não acredita no fim do mundo.
(1) Sei que Pacheco Pereira, um dos espíritos brilhantes que Portugal possui, não acha que Cuba seja uma «democracia totalitária» no sentido de Talmon. Mas é-o, em minha opinião, por combinar a retórica e a imagética demófila e a quase completa ausência de liberdade. E é-o, ao consagrar constitucionalmente direitos cuja eficácia se enfraquece pela ausência de garantias.
E é-o, se tivermos em conta, como dizia ironicamente Duverger, que há democracias que não incluem o povo.
ALLAN BLOOM, The Closing of the american mind
NUM debate recente sobre a condição cadaverosa do regime democrático-totalitário cubano (1), voltou a falar-se na tese Fukuyamiana do «Fim da História». De tanto citada, arrisca-se esta a parecer uma doutrina póstuma. Mas não é. Para muitos eggheads de Washington, D.C., trata-se de uma das primeiras bases teóricas do neoliberalismo triunfante.
Colocando no mesmo saco o pan-historicismo idealista e materialista, Fukuyama diz simplesmente que uma ideia política, o liberalismo, e um sistema político, a democracia, - triunfaram sobre os seus arqui-inimigos e arquétipos negativos, o comunismo e os regimes do chamado socialismo real.
A história como dialéctica de experiências teria assim acabado - «por agora», diz Ironicamente um crítico alemão de Francis Fukuyama - e o caminho abrira-se para um novo primata, o Homo Liberalis. Este homem é simultaneamente um animal consumista, agarrado à civilização hedonista, e um ser livre, feliz, autónomo e identificado. A sua liberdade, como num sistema Rawlsiano, conjuga-se racionalmente com as parcelas de liberdade dos outros homens. Fukuyama parte de uma verificação que já havia sido feita por muitos teóricos - e teólogos - a seguir a Hiroshima A Dos Mil Sóis. A seguir a 45 disse-se que todos os regimes aceitaram a democracia como regime, ao menos prestando-lhe lip service, convertendo-se às suas fórmulas, discursos e mitos. Por mais tirânico que um modelo fosse, após a queda do Eixo, diria no máximo ser ademocrático, mas nunca antidemocrático. Hoje o mesmo se passa com o liberalismo, todos os sistemas - desde o Brasil adiado de Collor ao Irão reciclado de Rafsanjani - declaram prezar, ao menos em espírito, a liberdade santíssima.
Mas assim como a seguir à Segunda Guerra, a «democracia» se encheu de apêndices e qualificativos - foi «burguesa» e «constitucional», «popular» e «social»,«económica» e «política», «parlamentar» e «musculada», «socialista» e «capitalista», e aí por diante - que traduziam as reais ambiguidades envolvidas na aplicação do modelo, também a partir de hoje podemos vir a ter a «liberdade» interpretada à maneira do pa- trão e do freguês. A liberdade, oui, mais... E os espíritos mais negros, menos crentes na capacidade redentora da experiência acumulada pelos povos, raciocinam noutras veredas: se a liberdade se absolutiza, podem crescer as desigualdades, e com estas crescem as sementes de revolta dos mal-sucedidos contra os felizes ou contra os hábeis. Ou seja, da liberdade total podem brotar os germes de novas tentações igualitárias e de Santas Alianças entre os falhados do planeta.
Os tumultos na cidade dos Anjos, na soalheira e tecnológica Califórnia, podem já ter sido um alarme nessa direcção, dizem os mesmos espíritos. E outros bons espíritos relembram coisas piores. Lembram ao Ocidente, por exemplo, o discurso de aceitação do prémio Nobel da Literatura por Soljenitsine, em que o sobrevivente do Gulag e do Pavilhão dos Cancerosos alertava para o excessivo optimismo de uma civilização livre mas moralmente decadente e intelectualmente entorpecida. Já Allan Bloom, no seu clássico anti-social democrata, que fez furor entre os revisionistas simpáticos de Leo Strauss, Nozyck e Ayn Rand, alertava para isso: o relativismo axiológico, a perda do pensamento arquetípico, o fim da era das visões do mundo pode levar a uma libertação mas também a uma perda.
A uma libertação, desprendendo o homem-súbdito da sua dependência quase narcótica em relação ao Estado e às ideologias redentoras. A uma perda, por poder fazer soçobrar o mesmo homem num ciclo infernal de dúvidas, angústias, egoísmos e solipsismos predadores. Diz-se que esta é uma era de incertezas. Mas se é assim, como se pode ter a certeza disso?
Diz Bloom que a degeneração do modelo ideológico sovietista esteve por detrás daquilo que viria a ser o colapso imperial que nem Gorbachev conseguiu suster. Mas refere ainda que outros «ismos», se podem seguir, no ruir das certezas absolutas.
Será o próximo «ismo» a incinerar-se o «liberalismo»? Quereremos nós ter liberdade para o dizer e para assistir a essa morte? Que tirano interior nos açulará então os cães negros da intolerância, seja ela romântica ou racional?
O mito do fim das certezas toma-nos incapazes de responder. Como Cratilo, o céptico, podemos apenas mover os dedos, pois as nossas palavras já não servem para descrever a realidade. Nem para descrever a ilusão.
Lá fora podem soar já as sirenes do Fahreneit 451. Mas ninguém liga. O homem descrente não acredita no fim do mundo.
(1) Sei que Pacheco Pereira, um dos espíritos brilhantes que Portugal possui, não acha que Cuba seja uma «democracia totalitária» no sentido de Talmon. Mas é-o, em minha opinião, por combinar a retórica e a imagética demófila e a quase completa ausência de liberdade. E é-o, ao consagrar constitucionalmente direitos cuja eficácia se enfraquece pela ausência de garantias.
E é-o, se tivermos em conta, como dizia ironicamente Duverger, que há democracias que não incluem o povo.
in K, nº 21, O frio da navalha: Forçosamente livres, Nuno Rogeiro, Junho de 1992
Comentários