Porque correm os homosexuais? (Parte 2)


Fotografia: Inês Gonçalves



Após a revolta, a crítica. Ou: com a revolta, a crítica. Como diria Foucault, talvez os homens não inventem muito mais na ordem das proibições do que na dos prazeres. Na homossexualidade, as combinações são múltiplas. Os prazeres constantemente rebuscados, as proibições palavra-de-ordem para a sua essência. Um pouco como a criatividade, a homossexualidade vai a par com a censura: quanto mais a segunda existe, mais a primeira é pensada e reinventada. Como se precisassem de um inimigo, da eleição de um inimigo comum, para merecerem toda a genialidade da sua génese inicial. Na antiguidade clássica, o amor dos homens pelos rapazes (os paidika) era uma prática "livre", no sentido em que era não só permitida pelas leis, como também admitida pela opinião. Possuía cauções religiosas em ritos e festas onde se interpelavam, a seu favor, as potências divinas que deviam protegê-lo. Enfim, como diz Foucault na História da Sexualidade, "Era uma prática culturalmente valorizada por uma literatura que a cantava e por uma reflexão que fundamentava sua excelência." Além de um amor cantado, era também uma canção com refrão, com regras partilhadas e aceites por todos. Os papéis estavam fixos à partida: de um lado erasta, do outro erômeno. Ao primeiro, mais velho e de maior status, cabia a posição de iniciativa, de perseguição - o que lhe conferia direitos e obrigações: tinha de mostrar o seu ardor e também de o moderar; dava presentes, prestava serviços e tudo isso o habilitava a esperar a justa recompensa. O outro, muito mais novo, amado e cortejado, devia evitar ceder com muita facilidade; devia evitar aceitar demasiadas honras diferentes e conceder cegamente ou por interesse os seus favores sem pôr à prova o valor do seu parceiro; devia também manifestar reconhecimento pelo que o amante fazia por ele. Nada era jogado ao acaso: estava em jogo a honra do rapaz, do respeitável senhor e do status futuro do desejado. Mas era um jogo aberto, sobretudo espacialmente. A corte fazia-se na rua e nos lugares de reunião: em espaços onde cada um se deslocava livremente, de forma a ser necessário perseguir o rapaz, caçá-Io, espreitá-Io lá onde ele pudesse passar e retê-Io no lugar onde ele se encontrava. O prazer estava também na necessidade de ter de correr ao ginásio, de ir à caça do amado, esfalfar-se em exercícios exigentes para os quais não se estava fisicamente apto, queixar-se da renúncia enquanto limpava os suores em cascata.

São códigos que se observam ainda nas condutas dos gays, muitos séculos depois. Procurar prazer, semelhança, evitar erros, acertar com menor esforço. À primeira. Com ritos de abordagem, transformam em perícia o isolamento para o qual são lançados ao longo do domínio judaico-cristão. São melhores no que fazem do que qualquer Casanova com um currículo vastíssimo em conquistas de alcova. Apostando num discurso fácil, dir-se-ia que à custa de desenvolverem uma cultura paralela, abundante em códigos só perceptíveis dentro da própria comunidade gay, reivindicam uma perícia e um requinte ad extremum na abordagem directa, na conquista de prazeres imediatos e sem custo. O perigo de engano é reduzido ao mínimo, o parceiro certo é tão fácil de identificar quanto possível. Uma das révanches à opressão homofóbica seria essa: as frustrações ocorridas por uma abordagem errada seriam reduzidas ao minimesimal. Os tempos eram outros; Na comunidade gay o prazer era total. O sexo proliferava, sem culpabilizações de maior, a cultura gay, em muitas capitais da Europa e em certas cidades dos EUA (nomeadamente S. Francisco, considerada por muitos como "o paraíso gay"), era reconhecida e de mérito; o "paraíso" (o tão falado paraíso), dizia-se, estava à mão. Estava-se nos anos 70 e, finalmente, fazia- se a consagração (seria?) do aparecimento do termo "gay" surgido durante os anos 20. Os primeiros bares gays já tinham surgido há muito na velha Berlim anterior à Guerra e daí proliferaram para toda a Europa e EUA. Restava libertar líbido, dar uso a prazeres condenados e retirar daí o máximo que lhes aprouvesse. No centro da cultura gay, a carne, o corpo, o abuso condenável entre os corpos do mesmo sexo. No cinema, na literatura, na noite. Sobretudo na noite. Nomeavam-se os sítios e logo eles se enchiam. Abarrotavam de corpos; o rosto era secundário e o sexo identificava o próprio desejo. Surgiram programas de televisão e rádio especificamente homossexuais, revistas e jornais, grupos de apoio, reuniões onde calhava só para exprimir uma sexualidade dita marginal e que os conduzia a práticas excessivas. Dizia-se.

in K, nº 2, Porque correm os homosexuais, Paulo Gomes, Novembro de 1990

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