Mulheres: As Italianas


Quando falamos de Itália pensamos em Veneza, Da Vinci, spaghetti, o Papa, pizza, Miguel Ângelo, lasanha, Florença, Fellini, Dante. A Itália está em nós muito mais do que parece. E impensável o mundo sem alguma coisa que não tenha que ver com ela. Pertence-nos como pertence aos italianos. A culpa é deles por nos terem dado tanto. Tanto? Tudo. Até as mulheres.


ACHO que não exagero ao dizer que o melhor cinema europeu foi, e talvez ainda seja, o italiano. Mas além das suas qualidades artísticas e das características que o fazem único, o cinema italiano ofereceu-nos uma galeria de mulheres tão extraordinárias, que seriam capazes de olhar de frente as suas rivais do grande cinema americano sem baixar os olhos. Querem umas temperamentais como Joan Crawford ou Bette Davis, Anna Magnani. Espiritual, chique como Grace Kelly ou Gene Tierney, Monica Vitti. Autoritária e sensual como Lauren Bacall, Silvana Mangano.

O que diferencia uma actriz italiana de qualquer outra é também o que diferencia o cinema italiano dos outros: nunca mostrar os seus heróis ou, neste caso heroínas, como um suprassuco da barbatana. Belas e voluptuosas, mas sempre deste mundo. Como se fossem acessíveis. Frágeis ou vulneráveis, mas nunca estúpidas. Insolentes, com um só desabotoar da sua blusa. Apetece-me dizer próximas, verídicas, nossas, possíveis, universais, simples, boas. Exactamente o contrário do que penso das americanas, à excepção do último adjectivo. Não me lembro de um único filme italiano onde a mulher tenha sido mostrada com desprezo ou ridicularizada. Não é por acaso que Fellini importou uma caricatura hollywoodesca, Anita Ekberg, para fazer com ela o que com nenhuma italiana ousava fazer. E não é por acaso que Ingrid Bergman fez o seu melhor filme em Itália.

No entanto, não é a qualidade dos italianos que fez a excelência das italianas, embora exista uma relação directa entre uns e outras. O exagero engatatão deles só pode ser equilibrado com um outro exagero. O exagero são elas. São mulheres de sonho feitas reais, ao contrário das suas congéneres americanas, que são mulheres reais feitas sonho. Daí ser credível que «boazonas» como Sofia Loren, Stefania Sandrelli, Laura Antonelli ou mesmo Cláudia Cardinale pudessem ter personagens dramáticas interpretadas a fundo sem sacrificar nada da sua sensualidade, sem perder a sua impertinente feminilidade.

As medidas delas poderiam ser, para os padrões dramáticos de outras cinematografias, impróprias para a seriedade que uma mulher abandonada ou adorada, mãe ou viúva, rica ou pobre deveria ter. Mas não para a italiana. Imaginem a Sofia Loren, com 26 anitos, a fazer de mãe perdida, com a sua filha no meio da miséria da guerra. O filme foi La Ciociara, de Vittorio de Sica. Loren ganhou, entre outros prémios, o Oscar. Se os americanos fizerem um remake, seria a insuportável Sally Field ou a neurótica Meryl Streep no mesmo papel. Muitas ficaram esquecidas por esse injusto mistério que é «fazer uma carreira». Mas quem viu Ossessione ou Senso, ambos de Visconti, nunca esquecerá Clara Calamai ou Alida Valli. Nunca o inextricável do desejo da mulher e a sua mistura de crueldade e fragilidade foi alguma vez tão perfeitamente representado.

No meio de tudo isto, Anna Magnani junto com Giulietta Massina devem ser duas excepções. A primeira porque impôs a sua particular beleza à custa do seu enorme talento; a segunda porque com o talento fez esquecer a sua absoluta falta de beleza. Mas há tantas outras com maior ou menor talento mas sempre com uma presença inapagável na nossa memória ou na nossa fantasia. Lucia Bosé, Lea Massari, Antonella Lualdi, Sandra Milo, Gina Lollobrigida, Valentina Cortese, Florinda Belkan, Virna Lisi...

Deve ser contagioso. Vêm-me à memória as estrangeiras que passaram pela Itália e que pareceram italianas naquele momento: Annie Girardot de Rocco, Jeanne Moreau de La Notte, Anouk Aimée de La Dolce Vila, Dominique Sanda de 11 Giardino dei Finzi-Contini, e claro, Ingrid Bergman. Por mais que o tempo passe, os filmes envelheçam e se descubra com a ingratidão inerente do espectador como a ousadia é ultrapassada ou os temas são datados; ou que na nossa cinemateca pessoal fiquem cada vez menos filmes italianos afogados pelos efeitos especiais das novas fitas, nunca poderemos pôr de lado o que eles nos deram. E deram-nos belíssimas histórias, belíssimos actores, actrizes e realizadores. Mas também nos deram a percepção mais masculina e a transmissão mais feminina que alguma vez se deu. Não devemos ter vergonha de lembrar o que essas boazonas italianas nos fizeram vibrar, de recordar tantos filmes onde o momento mais dramático acontecia sempre quando Ela estava em combinação ou com um decote aparentemente inapropriado para o caso. Quando sempre nos debatíamos entre concentrarmo-nos na tensão dada pelos personagens no meio da história deles, ou a beleza doméstica e tangível dessa mulher em fúria, triste ou vindicativa, no meio da nossa história.

in K, nº 19, Mulheres: As italianas, Carlos Quevedo, Abril de 1992

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