Porque correm os homosexuais? (Parte 1)


Foto: Inês Gonçalves



V I V E M em duplas existências, em caminhos paralelos, cheios de duplicidades, de duplos sentidos. Cliché? Certo, os gays portugueses resumem-se ainda a um enorme cliché de identidade ora exuberante, ora fechada em silêncios ou sussurros, ora em pequenos guetos com bandeiras culturais. Não correm a caminho de manifestações anti-rácicas Avenida da Liberdade abaixo, não se reúnem em parques ao domingo à tarde para debater violências e discriminações homofóbicas, não promovem abaixos assinados contra separatismos sexuais, morais, políticos que os afectem enquanto entidade sexual. Há dez ou onze anos atrás, levantaram a perna e parecia que alguma coisa ia acontecer. A revolução política ainda estava fresca nas memórias, o momento parecia indicado para se tomar posição e destaque hastear a bandeira da homossexualidade lusitana. Em Braga falava-se da primeira associação gay, em Lisboa preparavam-se os primeiros encontros - e julgo que os últimos -, em Janeiro de 81, do Colectivo de Homossexuais Revolucionários na Comuna. Como afirmou na altura Isabel Leiria, uma das iniciadoras do CHR "Não se trata [não se tratava] de fazer a apologia da homossexualidade, mas de criar um movimento de reconhecimento da homossexualidade como realidade humana, de despenalização e aceitação social" (in Raiz e Utopia). Os ânimos eram efervescentes e era muita a vontade de fazer alguma coisa. Muitos dos nomes ligados às artes e ideias assinavam este movimento e a corrida parecia ir começar. Mas tudo correu à velocidade do silêncio.

Um pouco à semelhança das próprias histórias pessoais contadas nas mesas do café, com o olhar direito de quem desafia o castigo dos outros. Entre altas vozes e silêncios, as histórias repetem-se, permanecem inalteráveis ao longo dos tempos. Os começos fazem-se como profecias inevitáveis. Com os primos, os amigos de infância, entre brincadeiras inofensivas, entre jogos de quem-faz-sem-querer, sabendo. A brincar ao quarto escuro, descobrindo o parceiro pelo tacto, em falsas guerrilhas com toques naïves no corpo que já se diz desejar. A tomada de consciência repete-se de história para história: "Sempre me vi a desejar os amigos de escola, a gostar de tocar no corpo dos meus amigos de brincadeira", "desde que me lembro que me excitaram sempre mais os corpos dos rapazes do que os das raparigas". Nada de novo. Tão banal que se ouve sem surpresa. "Tiveste a tua primeira experiência com quem? Com o teu primo?" Claro. Tão claro como o reconhecimento tardio das preferências, o terror de contar aos pais, o pânico de partilhar as certezas no trabalho. Tão certo como rivalizar o prazer de aventuras sucessivas e efémeras com utopias de amores para sempre, definitivos. Corre-se depressa, à velocidade da luz. Fixado num amor, em excessos de dor e de desilusão, em sublimações, em sucessos profissionais, em revoltas, mas sempre depressa. Correm. Para o refúgio da casa, para o casamento mascarado, para a denúncia de erros paralelos, para compensações de outros níveis, para o prazer directo e imediato, sem custo.

Como se tratasse de sobrevivência, como se procurassem um equilíbrio difícil onde julgam existir um desequilíbrio. São poucos os que vivem com prazer a homossexualidade percebida, querida e aceite. Com normalidade. Ao contrário dos heterossexuais? Claro que não; apenas a uma velocidade diferente, como se a "anormalidade" incutida por anos de opressão moral e cristã obrigasse a um redobramento dos gastos investidos e, consequentemente, a um redobramento dos ganhos e das perdas. O sofrimento, brada-se a dobrar, a felicidade exprime-se em demasia, os amantes querem-se de perder o fôlego, a solidão sente-se como castigo, como desígnio de deuses. Não se alcançam, nunca. Daí a sua genialidade, daí o seu sentimento de perdição: negado mas sentido entre as quatro paredes, entre as ausências, entre o silêncio pesado. O inconfessável. Ainda hoje, ainda hoje quando a noite das confissões possibilita, de ânimo leve, sem culpa, a vivência plena da homossexualidade. Ainda assim se corre. Uma das surpresas na TF1, o canal de maior audiência da televisão francesa, foi, há três meses atrás, o programa sobre o tema "O meu filho é homossexual" inserido na nova série A Vida em Família. Sentado perante 8 milhões de espectadores, às 22H30 de uma noite que nada teria de anormal senão a hipótese dos seus pais estarem a assistir à emissão, Eric - um jovem de 19 anos - vai jogar o papel de filho homossexual. Mesmo a horas tardias o jogo não era fácil e a tarefa era tudo menos de criança. Talvez os pais o vissem no écran, talvez não. Fosse como fosse, a questão era esta: como jogar esse jogo, como chegar lá? Mesmo hoje, quando tudo parece querer mudar, mesmo para quem se reivindique liberal em questões de sexo, ainda é de ficar surpreendido com a coragem deste passo, de uma franqueza quase comovente. Provocador? Nem pensar. O tom era calmo, sem apelos nem desesperos. Falava-se do inominável apenas. Da lei do silêncio, do "se disso não falarmos, isso não existe". Eric apenas queria mostrar que era como toda a gente. Ou, como ele começaria por dizer, que "essa pequena particularidade [que ele tinha] cada um tem as suas". Não se esquecia que "essa pequena particularidade" ainda choca, ainda mexe com a moral e os preconceitos de quem não despregava os olhos do écran; não tinha nenhuma dúvida de que os seus pais iriam reagir mal, que iriam pensar que não têm um filho como os outros, que "me considerarão antes de mais como um homossexual e só depois como filho". Mas quis falar nisso. Correr para o écran, olhá-lo e dar a conhecer as suas melancolias intermináveis, o seu lidar solitário com essa experiência, de quem não encontrou outra solução senão a de suportar tudo de boca fechada. Justifica-se: "Como isto [a confissão] vai sair menos directamente, é mais simples para mim e vai obrigar os meus pais a reagir." E reagiram. A mãe confessou que sentiu as pernas tremerem e o chão desaparecer debaixo dos pés; o pai pensou nunca mais conseguir ultrapassar tamanha vergonha. E o programa continuou. Sucederam-se os testemunhos, as confissões facilmente nomeáveis, as indignações francamente reprováveis. Uma atmosfera trágica? Sim, em parte, mas essencialmente banal: tragicamente banal. Ridícula. A surpresa vem - claro - das explicações da homossexualidade, dos conselhos. Ai Jesus! A exemplo, Madame Marie Saint Didier - autora do press release que acompanhava o programa - na sua mensagem aos filhos homossexuais, fez chorar as pedras da calçada. Dizia ela: "Dirigindo-me a eles, queria fazê-los reparar que ao optarem assim rejeitam metade da humanidade [se fosse na Austrália seria 4/5 da população, mas ela não queria ser tão trágica, metade já servia para lhes abrir os olhos!]. Para mim, um casal é complementar. Ora num casal homossexual existe um olhar ao espelho. Quero com isto dizer que não os repudio, porque todos nós somos feitos de um homem e de uma mulher. Todos nós temos uma parte masculina e outra feminina em nós mesmos [não diga!]. Logo, está fora de questão recusá-los. Mais do que nunca são nossos filhos, pois estão em dificuldade. Precisam de nós, do pai e da mãe." Pergunto-me: e o Deus-Pai em tudo isso? Porque correu Eric?

in K, nº 2, Porque correm os Homosexuais, Paulo Gomes, Novembro de 1990

Comentários

Anónimo disse…
admiro muito a atitude do Eric.
Um grande abraco para ele.

Mensagens populares deste blogue

Traduções Selvagens 1

Vidas Perdidas

Ditados populares