Portugal vai ser tão bom, não foi?


Ilustração: José Fragateiro




Mais um excelente artigo de Miguel Esteves Cardoso, atestando o optimismo do início dos anos 90. Ele tinha razão: “quando a esmola é demais o pobre desconfia”. Mas para quem nunca soube, ou simplesmente, tenha reparado, nem sempre fomos um país de escândalos, de pedofilia, prostituição e corrupção. Já não estará na altura de termos umas merecidas tréguas? As nossas costas necessitam urgentemente de folgar...


“C H E G O U a Primavera e é-me difícil reprimir esta exclamação, que pode ser irritante para os pobres, desempregados e idosos, que reflecte com certeza uma visão parcial da realidade, e que atesta o meu alheamento de tudo o que é importante e verdadeiro neste mundo; mas têm de me desculpar, porque rebentarei se não puder aqui desabafar: Olhem que bem que se está em Portugal!

Será da estabilidade? Será das novas medidas de crédito para habitação? Será do regresso do camarão vermelho à costa do Estoril? Será por termos ganho a guerra do Golfo? Será por causa da onda internacional do independentismo e democracia? Será porque estive recentemente em Londres e não descobri nada que valesse a pena trazer, à parte uns livros e uma garrafa de mezcal? Ou será da luminosidade? Que Deus me perdoe, mas ao percorrer a Marginal no meu novo Range Rover branquinho, a ouvir Frank Sinatra enquanto o sol desce sobre o rio Tejo, esqueço-me daqueles que sofrem, dos que lutam todos os dias pela sobrevivência. Para ser sincero, varrem-se-me da cabeça todos os compatriotas que passam mal.

Naqueles momentos dourados, as classes desprivilegiadas resumem-se aos infelizes que vejo ao volante dum Nissan Patrol. Que bem que se está em Portugal! Agora a sério. Que clima! Que bem que se come! Que bom e barato é o vinho! Que bem escrevem os nossos grandes escritores! Que prestáveis são as farmácias! Que belos filmes passam na televisão! Que simpáticas as pessoas! Os benefícios que a CEE tem trazido! A quantidade de queijos franceses que já se podem comprar nos supermercados! A desfaçatez com que se entra em Paris ou em Londres! A rapidez com que agora vêm os filmes, os CD e os jornais estrangeiros! A estabilidade do escudo! Estou a falar a sério! Os concertos! A beleza da nossa terra! As praias por descobrir! A facilidade com que agora se compra um monte no Alentejo! Não, de facto, desculpem mas começa a ser inegável. É que não se está nada mal em Portugal. Bolas! - é Primavera. O fascismo e o comunismo passaram à história. Os sabotadores e os terroristas reformaram-se. As manifs e as organizações de massas já deram o que tinham a dar. A inflação está controlada. O Governo está a governar. Cada nova estatística quebra um novo recorde de bem-estar. A Oposição vê-se aflita para se opor. As greves diminuem. Os salários aumentam. O Torres Couto continua a não deixar crescer o bigode. O PCP está contente. O CDS está a recuperar. O PS tem esperanças. O PSD vai ganhar as próximas eleições. Mário Soares é o nosso Presidente. E vem aí o Verão! Vamos todos encontrarmo-nos, com um Cornetto na mão, na praia do Vau! Combinado?

Como profissional da má-língua, pela primeira vez temo pelo meu ganha-pão. Vai sobrando muito pouco que seja digno de critica ou chalaça. Se as coisas continuam assim, qualquer dia não haverá nada de novo na nossa Pátria do qual se possa dizer profissionalmente mal. Quem é que gosta de ler uma coluna cujo principal teor critico é exclamar “Ah, mas que bem que se está em Portugal!"? Se Portugal se toma numa espécie de Suíça atlântica, conforme sonha o Dr. Lucas Pires, que será de nós colunistas? Seremos capazes de adoptar o estilo suíço, lamentando a boa sorte que temos? Será criveI exclamarmos: “Ai que maçada sermos tão ricos!" ou “Ai que chatice esta transferência governativa e esta harmonia cultural!"

Será que ainda viverei a vergonha de ver escrito, num jornal português, o queixume nacional helvético que é "Se calhar somos demasiado perfeitos..."

Perfeitos? Nós? Não, mas a verdade é que já fomos mais imperfeitos, sim senhor. Desculpem Iá. Já passamos mais fominha. Já aguentamos com mais barafunda. Já nos metemos em maiores confusões. Já foi muito mais difícil trocar notas de quinhentos paus por libras esterlinas. O leite já escasseou mais. O trânsito já foi mais interrompido por manifestantes. Até os ministros já foram mais incompetentes e desonestos que hoje são! Parece impossível, mas é verdade.

Portugal arrisca-se a tornar-se um pais como os outros, atingindo o bem-estar e o tédio das suas congéneres europeias. Já repararam como hoje é raro aparecer uma noticia sobre Portugal na imprensa estrangeira? Não havendo um mínimo de caos, de crise, de cravos na mão, de bichas para a gasolina, de operários a falar durante horas na televisão, tudo ao som da cadência de governos sucessivos a cair ritmadamente, Portugal vai apagando-se da cena internacional. É triste!

Se calhar é do pólen. Mas abro os jornais e não encontro a quantidade de problemas insanavelmente suculentos que encontrava dantes. Há uma nítida sobrecarga de soluções. Há soluções para as quais nem sequer há problemas - como as "soluções" dos arquitectos. Tudo isto sem a velha fricção ideológica entre soluções rivais, para compensar. É tudo muito ameno, muito pluralista e muito civilizado, com ex-marxistas a dizer a ex-fascistas, em tom morte-lenta, que "se calhar o meu amigo tem toda a razão". Pela primeira vez desde o 25 de Abril é possível imaginar o Dr. Cunhal a encorajar um sobrinho a ir votar no Dr. Cavaco ("Vai, meu filho - é asneira, mas sempre é mais democrático que te absteres") e o Dr. Cavaco a deliciar-se com o facto do jovem afilhado ter votado no PCP na sua primeira ida às urnas ("É uma opção de voto como qualquer outra... sabes que o Padrinho sempre teve uma grande admiração pelo político que é Álvaro Cunhal...?").

Está tudo muito bem. A democracia e o desenvolvimento são mesmo assim. Ao subir a Avenida Dom Carlos ao fim da tarde, com as flores dos jacarandás a cair suavemente no capot do Ranjolas, vejo-me aflito para arranjar só duas boas razões para não votar no PSD. Nem me recordo tão-pouco de quanta gente ainda vive em barracas, dos doentes nos hospitais, dos cabo-verdianos, dos presos. Dos terríveis problemas sociais que ainda afligem a nossa população, tenho de confessar que não me ocorre nem um.

Passo do CD para a telefonia. Ouço as notícias nacionais. O Dr. Cavaco anuncia que vai baixar o preço da gasolina. Um relatório da OCDE diz que temos a melhor taxa de crescimento desde 1967. Há paz em Angola. Vai haver multipartidarismo em Moçambique. Em Cabo Verde ganhou um homem que nos é simpático. O Dr. Durão Barroso está contente. Vem aí mais uma tranche de dinheiro da CEE. Vai ser mais fácil comprar casa. Os carros com mais de 3000 cm3 de cilindrada vão deixar de ser penalizados. Alverca foi promovida a cidade. E foi criada uma nova reserva natural na Serra do Tijolo.

Depois passo ao noticiário internacional. Caos. Fome. Miséria. Ânsia democrática. Distúrbios. Incerteza. É declarado estado geral de "Seja o que Deus quiser". As notícias parecem-me estranhamente familiares.., Mas onde é que eu já ouvi isto? Só muito mais tarde, nos confins da minha memória, me lembro que era assim que se referiam aos acontecimentos aqui em Portugal. Quem não se lembra do Verão Quente? Mas calma. Não pode ser tão bom. Estamos demasiado bem para o nosso bem. Vem aí borrasca. E da grossa. Esta pasmaceira não pode durar. A característica "porreirinha" da nossa situação económica, política e social não é nem sadia nem natural. Vai virar, vai ser bonito! Estamos a atingir o limite. Existem várias maneiras de classificar o estado de uma nação, mas "está tudo numa boa" não é a mais sólida. Aqui há gato. Misturemos as metáforas. Ponhamo-nos a pau. Como dizem os ingleses "So you trust the Virgin, do you? Well, don't run then." Nós próprios dizemos que "Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas". E é verdade. Este período aparentemente folgado não é mais que um intervalo entre pauladas. É certo que os intervalos costumam ser mais curtos, mas se calhar o pauliteiro foi a Miranda ver a mãe. Descansem que ele já volta. Há-de vir com força redobrada. É só esperar pela pancada.

Estamos habituados a comer na cabeça - que mal é que isso tem? Não cabe a um povo como o nosso viver sem as suas tradicionais dificuldades. Não está certo. O povo português, em estando bem, engorda. Marimba-se. Perde a potência sexual. Deixa de ir à missa. Compra uma roulotte. Vende o lagar. Passa a temperar a salada com salad cream. Apanhando uma criança ou um estrangeiro a jeito, dá-lhe sermões acerca de Portugal no período paleolítico antes do Professor Cavaco. Passa a assinar os cheques com rubrica. Casa-se com a parabólica. Ganha ódio aos netos. Deixa de estar disponível para baby-sitting. Esquece-se de como se comem caracóis. Tira fotocópias dos boletins de voto para ter o prazer de poder votar todos os meses no Dr. Soares. O bem que se está em Portugal neste momento é como aquele calor abafado e morto que antecede uma tempestade. Vamos ser apanhados desprevenidos. Com a boca na botija do Halazon, a disfarçar o sabor do bagaço e do refogado na ânsia de alcançar um hálito mais europeu. Cuidado. Vai-se-nos entalar a mãozinha na urna do PSD e não a vamos poder tirar tão cedo. Vai ser um horror. Vai ser como antigamente. A câmara de vídeo vai ter de voltar para a loja, e o Zé e a Marieta para a casa dos pais e o bate-chapas para a célula da UDF e os fins-de-semana para o galheiro e as noites para a mercê da RTP e o Prof. Cavaco para o Algarve e Portugal inteiro para a fossa milenária onde sempre esteve metido e de onde provavelmente nunca deveria ter saído. É poético, não é? Ah, lama primeva! Massa que parísteis Viriato, Genoveva, Dom Fuas Roupinho, o Eng.º Fernando Peralta e Salazar! Ah fossa linda! Bons olhos te vejam! És estrumeira mas és arejada! Outra assim ao ar livre não há! Meu pequeno monturo atlântico, que sabeis embrulhar o odor a merda com o cheiro da maresia e aromatizar as bostas entretanto postas com uma manta santa de manjericos! Que saudades! Dize! Onde estivésteis, pocilguita amada? Porque demorásteis tanto a voltar? Fiásteis na cantiga do Cavaco? Foi? Acreditásteis naquela treta toda? Também eu. Mas acabou-se o que era doce! Vem, fossa querida, recebe-me em teu argiloso seio e cobre-me de castanhas carícias. Vem e devolve a esta tua cria antiga a alegria de refocilar eternamente no teu regaço, com o resto da pecuária!

Esqueçamos juntos este negro período em que nos pareceu estupidamente que se estava bem em Portugal. Doce ilusão! Bera quimera! Acerbo Sporting de Espinho! Como pudemos ser tão cegos? E já agora, ouve lá - onde pusesteis os meus Ray-Bans? Ai, cala-te, Musa! Cala-te, que Já estou cheio de saudades de Julgarmos que Portugal estará bom! Cavaquinho - Imploro-te, pára, deixa de tocar!

Ai obrigadinho! Como dizia aquele impetuoso coelho para a jovem noiva na toca da noite de núpcias, alçando as patinhas dianteiras por sobre as costas dela e apontando o seu veloz e inflamado dardo para o alvo delicado e virginal que ela, por amor, lhe oferecia: "Ai, vai ser tão bom, meu amor - não foi?" “

in K, nº9, O Arco da Velha: Portugal vai ser tão bom não foi?, Miguel Esteves Cardoso, Junho de 1991

Comentários

Rato Grande disse…
É realmente impressionante, este ponto de vista . Tinha eu um mês, e era assim o estado do meu querido Portugal .
Acho que era bom, realmente . Ansiar pela fossa ? Os iludidos, desde que não governantes, são felizes .

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