As Culturistas


HÁ UM GINÁSIO encantador na Praça das Amoreiras, o Ginásio Jardim, de ambiente familiar e soalhos luzidios. É lá que se juntam todos os dias alguns rapazes e uma mão-cheia de senhoras casadas com aquele ar eterno de quinze anos. O ginásio é um oásis de saúde, com a luz entrando a rodos e janelas abeirando-se das copas das árvores. Apesar de ser um local onde as pessoas devem exercitar os músculos e soar as estopinhas, o Ginásio Jardim é um repouso. A rotina de quem o frequenta inclui movimentos de aquecimento e, se houver energia, passagem pela sala das máquinas. A sala das máquinas é uma coisa intimidante, com pesos, bicicletas que não vão a lado nenhum e espaldares encostados às paredes. Há lá tudo para tornar as praticantes naqueles seres duros e musculados com braços do tamanho de pernas e pernas do tamanho de torsos. Mas o mais interessante é que nenhuma das senhoras pretende chegar a esse estado, porque, dizem, os músculos são pouco femininos.

Acrescentam que não é só a estética que não as atrai, é a forma musculada que as desencoraja, não se sentiriam bem dentro do seu próprio corpo. Pergunto-lhes que acham das mulheres culturistas e do sucesso que têm em certos círculos masculinos. Demitem a minha pergunta com um simples e sorridente «mulheres cheias de músculos são horríveis, não compreendo que possam ser atraentes». Quanto à atracção que por elas têm certos homens, dizem que o melhor é perguntar-lhes a eles. Mas há quem arrisque adiantar a seguinte ideia: os homens que gostam de mulheres culturistas devem ter tendências homossexuais. Deixei-as ocupadas no controlo da anca e do abdómen, no fortalecimento do corpo e firmeza da carne.

Mas se é verdade que a sabedoria comum exige da mulher mais curvas do que rectas enrijecidas., mais ombros amaciados do que coxas de ciclista, também é verdade que nem toda a gente pensa e age da mesma maneira. Há por esse mundo fora quem tenha opinião oposta, e actue em conformidade com ela. De facto, cada vez mais os ginásios estão a ser invadidos por uma horda de mulheres que não querem ter pezinhos de Ava Gardner, mas sim uma grande peitaça copiada do Schwarzenegger. Ou seja, não se conformam com as regras clássicas, segundo as quais a mulher terá obrigatoriamente de ser bem torneada se quiser atrair o homem dos seus desejos. O body-building feminino é um misto de vários contorcionismos psicológicos: narcisismo extremo, vontade de obter reconhecimento social, superação de fraquezas interiores pela exacerbação visual da superfície pessoal, recusa do comum e do mundo normal, busca da sensualidade feita de suor e castigo, obtenção do prazer através do cansaço repetido, um pouco como nas práticas sexuais sadomasoquistas, diga-se. Os detractores mais agressivos desta filosofia avançam mesmo com a ideia segundo a qual os culturistas dão corpo, através do exagero nos tendões, às suas motivações obscenas ligadas a frustrações mais profundas, que têm a ver com um gosto recalcado pela violência. Ou, como dizia Lisa Lyon, a primeira e mais importante mulher culturista da era moderna, o que se procura é a obtenção de um corpo «nem masculino, nem feminino, mas sim felino».

Para quem não está habituado à ideia de as ver todos os dias, sentadas na cadeira do cabeleireiro ou calcorreando os empedrados da baixa, a visão pode ser chocante: em vez de dedos há garras, no lugar dos pulsos há armadilhas, os braços são guindastes, o pescoço erguendo-se no meio dos ombros assemelha-se a uma versão ambulante da ponte sobre o Tejo, o peito é uma estante, o estômago um campo de minas e por aí abaixo passando pelos tornozelos, verdadeiras fundações de aço e betão enfiadas nuns sapatitos de salto alto. Ainda está para se saber o que pode ver de desejável numa senhora de pernil maciço e pescoço taurino. Para quem as namora e as massaja no calor dos lençóis, a resposta é bastante simples. A culturista encarna o que de mais desejável existe no universo selvagem das nossas fantasias: uma feminidade compacta e férrea que se recusa a ser dominada, um corpo elástico e animal que abraça sem piedade, uma capacidade de comando que obriga o companheiro a dirigir-se inexoravelmente para a zona labial inferior, essa sim, que nenhum exercício poderá jamais modificar.

As cavalgadas nocturnas passam então a ser mais intensas, porque em vez de um pólo energético sobrepondo-se a um outro passivo, há a explosão de uma anatomia original e andrógena, permanentemente dominadora, à maneira das antigas gladiadoras espartanas que semeavam temor e indizível desejo à sua passagem.

Talvez, quem sabe, acordando um dia cansados e doridos mas satisfeitos, esticaremos o braço para dar um mimo. Pensando ser a coxa, estaremos a acariciar o braço. Ela, para agradecer a festinha, pegar-nos-á na mão. Os nossos ossos estalarão, mas não faz mal. Como é bom sentirmo-nos amados.

in K, n.º 19, Há gente para tudo, Hoje: As culturistas, A. J. Rafael, Abril de 1992

Comentários

Anónimo disse…
Muito bom! Infelizmente em Portugal existem poucas mulheres com a força de carácter suficiente para pegar em pesos sem medo. Mas que as há, há, e não são bruxas! Já a cena da dominação não é para mim, prefiro caminhar lado a lado com uma mulher que não desmaie porque a mochila está tão pesada como a minha.
Anónimo disse…
Péssima caracterização e esteriótipo claro. Mulheres culturistas são acima de tudo exemplos de determinação e força de vontade, amantes do esporte e não de seu próprio ego. A sociedade nos impõe como devemos ser e agir, exemplos de beleza, como no seu pinart americano retratando explicitamente isso. Seja um modelo norte-americano. Engula isso e viva de modo fugaz. Nota-se que não tem nenhum conhecimento sobre o tema e viverá a mercê de indústrias programadas pra lavar a sua mente e sua alma.

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