Fugir de Portugal - Parte 1 - O Mezcal


Um interessante artigo sobre como "fugir" de Portugal, escrito por Alberto Castro Nunes, Carlos Quevedo, Nuno Miguel Guedes, Miguel Esteves Cardoso e Pedro Rolo Duarte. Imaginamos perfeitamente o gozo que deve ter dado escrevê-lo. O artigo vai ser dividido em quatro partes, sendo esta a primeira, e será publicado na sua totalidade ao longo desta semana.



"Felizmente o País Real não exige a comparência de todos os portugueses. Podemos não comparecer. Não ligar. Fugir: Não querer saber. Podemos emigrar. Podemos dedicar-nos ao trabalho. Podemos tentar a droga. Podemos enriquecer. Podemos pensar, mesmo erradamente, que a política não é muito importante. Podemos dedicar-nos à família, ao álcool, à vela. Com dinheiro e boa vontade, não é difícil fingir que Portugal é independente do PSD.

Nos países mais civilizados, as pessoas mais civilizadas conseguem comportar-se e divertir-se como se outras não existissem. A melhor fuga de todas é aquela que nem sequer admite que anda a fugir. Os mundos herméticos vão voltar. Vêm aí os casulos novos e novas borboletas. É no país real que as pessoas se lembram de criar as maiores irrealidades.

O MEZCAL

O MAIOR PROBLEMA é quando surgem as questões verdadeiramente importantes, os problemas que não têm (nem devem ter) solução. Qualquer português minimamente decente já se deve ter confrontado com as quatro perguntas irresolúveis, a saber:

1. Quem somos?

2. Para onde vamos?

3. Deus existe?

4. Em caso afirmativo, expliquem-nos Leiria.

Não é fácil, nem é possível. Sobretudo, a resposta à última. Tudo se complica, porque nos vem à memória o nosso primeiro-ministro, os cinquenta e tal por cento que nele votaram, o Dias loureiro, o dinheiro recente e a revista Sábado. Em resumo, Portugal. Por isso, fugir para outro país faz bem. E a melhor maneira de poder fugir sem mudar de sítio é beber álcool mexicano, talvez o melhor do mundo e sem dúvida o mais forte.

Não se trata de vício, mas de bom gosto. Não há nada no mundo que se compare a um bom mezcal anêjo (ou envelhecido). Natal é quando um homem quiser, e com três ou quatro tequilas blancas é todos os dias. E com o festivo levantamuertos - versão masculina (discutivelmente a bebida mais perfeita da galáxia), Cavaco Silva nunca existiu.

Que se lixem os Fernandos Páduas, desta vida, porque houve quem falasse mais e melhor. Sobre o mezcal, diziam os médicos espanhóis do século passado: «abre o apetite, favorece a digestão, acelera a cicatrização das feridas, acalma a dor, revigoriza, acalma a sede provocada pelas insolações, provoca alucinações agradáveis, faz desaparecer a fadiga, estimula a aviva a inteligência». Não é uma opinião embriagada, é uma certeza provocada por alguns séculos de ocupação.

Quem não acredite que consulte os canhanhos ou, melhor ainda, que experimente.
Um bocadinho de história mezcaliana, só para impressionar e convencer: tudo começou na era pré-colombista (bocejo). Os índios descobriram que pela fermentação da seiva do fruto de uma planta (ressonar) - o maguey, espécie de agave, seja lá isso o que for - podiam ter o paraíso num instantinho (pausa para digerir a metáfora). Chamaram-lhe metl ixcalli (maguey cozido, mais- ou menos).

No século XVII, os Espanhóis, entre uma chacina e um massacre, acharam por bem exportar a aguardente que se fabricava nas colónias, e começaram a destilá-la por alambique. Em 1785 a corte castelhana resolveu proibir a fabricação, para evitar que a bebida concorresse com os álcoois europeus. Foi tarde: toda a gente já se embebedava alegremente com o mezcal, como passou a ser conhecido.

O mezcal é uma bebida culta e de culto. É célebre a preferência de Malcolm Lowry por este LSD dos pobres. Tanto que muita coisa escreveu em solene homenagem. Por exemplo, e a propósito, o cônsul de «Debaixo do Vulcão» diz assim: «é a bebida que, mesmo quando a levo aos lábios, não consigo acreditar que seja real». Cavaco, quem és tu?

A fuga oferecida pelo mezcal é das mais saudáveis. Não dá ressaca; não dá remorsos; não dá hipóteses. Deverá ser servida em copo estreito e curto, acompanhado de pimenta e sal. Deverá ser bebido - como a tequila - de um só trago. A primeira sensação é de ausência qualquer, geralmente compensada por uma segunda dose. A segunda sensação é de uma presença qualquer, e nessa altura já deixámos Portugal.

Existem dois tipos de mezcal, o anêjo, envelhecido e sofisticado, e o jovén, novo e aventureiro, todos produzidos em Oaxaca, capital do estado onde nasceu Benito ]uarez, libertador do México. Recomenda-se o primeiro, pelo sabor e pelos efeitos.
Os Portugueses, entretanto, já não se podem queixar: as importações estão a caminho e nos círculos esclarecidos já se comparam as virtudes de um Montc Alban com as de um Ultramarinc (nome retirado de um livro de I.owry). Em Lisboa, os bares mexicanos estão a proliferar, mas consulte um especialista antes de cometer uma loucura: é que não há nada pior do que um mezcal adulterado.

Depois há a tequila, nome de bebida e cidade e nascida para o mundo por volta de 1920 no estado Jalisco. É uma parente pobre do mezcal - também é feita a partir do maguey, mas é fermentada por vaporização - mas o efeito base aproxima-se muito do familiar rico. A variedade blanca é a mais popular e, quando bebida pura, deverá ser convenientemente escoltada por sal e limão. A «tecas» - como é conhecida pelos iniciados - é mais lenta a actuar, mas não é menos infalível. O resultado será tanto melhor quanto maior o calor sentido no local onde é bebida. A ideia é viajar até Sierra Madre em 1940, com suor e barba por fazer. Deverá ser consumida exclusivamente entre homens, para se poder discutir o passado amoroso sem grandes inibições e chamar as coisas pelos nomes próprios. Um conselho: os adolescentes devem-se abster.

Outra grande vantagem é que permite apagar do estômago qualquer vestígio de uma refeição leve como o cozido à portuguesa ou arroz de cabidela. A «tecas» é a pastilha Rennie dos iluminados.

E agora, o levantamuertos. É uma bebida típica do Dia dos Mortos mexicano, que coincide mais ou menos com o nosso Dia de Finados. Segundo a tradição, é bebida em pleno cemitério, como celebração das almas que se passaram para o outro mundo e que um dia ressuscitarão. Tem uma versão masculina - amarelada e suave - e outra feminina - transparente e excessivamente doce.

A versão masculina é a melhor, tanto para rapazes como para raparigas. A composição permanece um mistério, mas sabe-se que uma gema de ovo é fundamental para um bom levantamuertos. É talvez a melhor e mais perigosa bebida à face da Terra, porque é fortíssima e tem um sabor divino. Aliás, os mais puritanos pediram já a sua classificação como «arma branca». O nome diz tudo. O efeito do levantamuertos é conhecido nos meios científicos como «efeito Yiihaa!», que se traduz basicamente por um trago e depois Yiihaa! (do mexicano «seja o que Deus quiser»). Tudo pode acontecer depois de alguns levantamuertos: insultos à paternidade dos melhores amigos, uma estadia nas Taipas, filhos, confissões de homossexualidade, condução de veículos tipo Poço da Morte ou pura e simplesmente uma alegria que dura semanas. É a fuga ideal da realidade Silva que temos que aturar todos os dias e recomenda-se a quem ainda não tenha ido (nem queira ir) ao «Preço Certo». E não há ressaca.

Que mais se pode pedir quando se quer escapar do Colditz - Cavaco, do sorriso do Joaquim Letria, da democracia de sucesso, da CEE, da Europália, do Henrique Diz, da estabilidade, das vivendas à beira da estrada, dos hipermercados Recheio, dos fatos de treino ao domingo, do recolher obrigatório das 4 da manhã, do totoloto na repartição, de Portugal? Viva Zapata!"

in K, nº 15, Portugal: Como dar o Salto, Alberto Castro Nunes et alii, Dezembro de 1991

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