As Mil Marias de Maria de Medeiros



Fotografia: Inês Gonçalves



Palavras para quê? Certamente um dos melhores textos do MEC


"Finalmente, vê-se uma estrela. Uma estrela a sério. Sem ser em carne e osso. Maria de Medeiros, a noite está linda, o mundo é teu.

A Maria não tem cara. Tem mil. Não é bonita. Não é feia. É bonita quando quer. É feia quando é preciso. Feia ou bonita, está sempre a brilhar. Arde, de arder. Luz, de luzir. Maria de Medeiros é uma estrela verdadeira. Uma estrela não tem cara. Até as pernas parecem engordar e emagrecer conforme as exigências da representação. Em Zazou envelhece à frente dos nossos olhos. É menina. É velha. Cresce. Quando é pequenina, é a mais pequenina. Quando quer ser grande, é gigante.

A Maria é portuguesa? Cem por cento. Excepto quando é cem por cento francesa. Quando canta "Il n'y a pas d'amour heurex" diante de mil franceses comovidos é mais francesa que eles todos. Parece a Piaf. Parece um passarinho. Sozinha num palco enorme, a cantar pela vida. Podia ser um rouxinol. Podia ser chinesa. Quando é para ser Anais Nin, é Anais Nin. Maria de Medeiros é uma actriz absoluta. Faz teatro clássico e moderno, bom e mau, com o mesmo empenho e a mesma qualidade.

A Maria não escolhe. Não tem preferência. Maria faz tudo. Fez um filme de uma peça de Beckett. Em Budapeste comprou um violoncelo melhor. Tem pena de não ter continuado a pintar. Quer retomar os estudos de filosofia. Ela é o que quer. Ela consegue ser o que se quiser. Não tem vergonha. Tem o descaramento - o ser capaz de não ter cara - das grandes estrelas. Posa. É um modelo perfeito.

De um momento para outro, passa de Virgem Maria para Maria Madalena. É inocência e podridão. Século XIII e século XX. Miúda e mulher. Maria de Medeiros é a Maria em que se estiver a pensar.

A Maria fala com toda a gente. Dá entrevistas e autógrafos a quem os pedir. Aparece com agrado igual na Vanity Fair como na Nova Gente. Em Estocolmo dorme na suíte real do Grande Hotel. No Teatro Nacional de Chaillot tem um rato morto no camarim. Andou de limousine em Lisboa, rodeada pelos fotógrafos da Interview. Em Paris, anda de metro. Come em castelos. No Teatro Chaillot, como carne com massa no self-service. Está em Hollywood e é hollywoodesca. Está em Lisboa e é lisboeta. Em Nova Iorque, é capaz de jogar na Bolsa. Em Lisboa, joga matraquilhos. E esteja onde estiver, está sempre bem. É uma estrela. Uma estrela não é como as pessoas normais. Está sempre no elemento dela. O elemento dela é a electricidade.

A Maria é portuguesa? Cem por cento. Excepto quando é cem por cento francesa. Quando canta "11 n'y a pas d'amour heureux" diante de mil franceses comovidos é mais francesa que eles todos. Parece a Piaf. Parece um passarinho. Sozinha num palco enorme, a cantar pela vida. Podia Lisboa. É permanentemente uma estrangeira no estrangeiro. É uma estrela. É sempre exterior. Pertence-nos mas não está jamais entre nós. A Maria não esconde nada. Mostra tudo. O que faltar, inventa. Está sempre bem. Se é feliz ou infeliz, não faz sentido perguntar. Está sempre bem como está, onde estiver, e tudo o que faz, faz muito bem. Ela pertence ao público. O público é o dono dela. É por isso que ela é uma estrela. Não há outra Maria de Medeiros. Se calhar, como as grandes estrelas, não tem alma. Só um buraco negro. Onde cabem as almas de quem representa. Se calhar, como as grandes actrizes, não tem interior. Tem sempre a alma à .vista. Sente-se que não há nada que se meta entre ela e uma personagem. Ela é quem se vê. Não tem segredo. Não precisa de ter.

Maria é uma actriz absoluta e natural. Vive num mundo que é bom porque lhe pertence. Não tem medo de se tomar uma estrela do cinema americano. Se for preciso mudar-se para Los Angeles, muda-se. Mas do que ela gosta é o que ela está a fazer agora, que se resume em quatro palavras: tudo ao mesmo tempo. Gosta. de estar na mão e na contra-mão, no gosto do público e no goto da crítica, com os dois pés no centro do êxito e dois dedos na vanguarda. Esta confusão é a casa dela. É lá que ela se sente à vontade. Ela não é um camaleão. É outra criatura. É uma verdadeira actriz. Uma artista no sentido antigo e absoluto. Uma criatura divina. Maria de Medeiros é uma estrela em qualquer língua. Em qualquer arte. Em qualquer luz. Em qualquer parte. É a Maria."

in K nº3, As Mil Marias de Maria de Medeiros, Miguel Esteves Cardoso, Dezembro de 1990

Comentários

Anónimo disse…
Grande grande ese artículo!!!!

Enhorabuena
Anónimo disse…
Que texto ridículo para uma proto-pseudo actriz sem o mínimo de sensibilidade... E humildade...
Isabel Lopes disse…
Maravilhosa
Isabel Lopes disse…
Cartas a Salazar de Maria Medeiros um decumeentario fabuloso e verdadeirp

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