Os homens que vivem dos mortos
Fotografia: Inês Gonçalves
Um homem com 60 anos de idade está sentado numa agência funerária à espera de ser atendido. Tem o boné ao colo. Parece mais desconfortável que triste. Vem um homem de fato cinzento, senta-se à frente dele. O velho explica que lhe morreu a filha. Em pouco menos de 5 minutos fica tudo tratado. A conversa oscila entre duas grandes questões: os desejos da falecida e os custos. «A minha filha disse que gostava de ir para o gavetão», diz o velho. «Bem», diz o agente, medindo cada palavra, «na medida do possível, procuramos sempre ir de encontro aos desejos do ente querido.
Posso dar-lhe uma ideia dos custos envolvidos...» O velho encoraja-o a continuar. O que ele quer é saber quanto é que lhe vai custar respeitar os desejos da filha. Sabe que não tem a mínima intenção de contrariá-los.
«Claro que, se fosse para sepultura térrea». diz o agente, «baixava umas largas dezenas de contos, de 160 para 120...» Está a fazer de advogado do diabo, tentando o velho a poupar 40 contos. O agente sabe de antemão que o velho não vai trair a memória da filha. Mas sacrifica-se a ser testemunha da lealdade dele. Como em muitos outros casos, o agente funerário lembra a crueza dos factos e dos números, para que os familiares possam reconhecer sentimentos superiores em si próprios. Assim, é com satisfação que o velho se decide pelo gavetão. Mais tarde, poderá contar que o quiseram aliciar a fazer um enterro mais barato, mas que não cedeu.
Toda a conversa gira à volta de números. O agente informa que, caso queira um embalsamamento, terá de ser efectuado por um médico e o custo roçará os 160 contos. Os embalsamamentos são raros entre nós, mas são obrigatoriamente referidos, para efeitos de descrição. É como se os agentes funerários, para se defenderem da desconfiança dos clientes, fossem propositadamente minuciosos na descrição de cada parcela. Os clientes receiam serem desagradavelmente surpreendidos pela factura final, cujo montante seria encoberto pelo pudor que rodeia a morte.
Um pouco antes, por exemplo, o agente refere o custo do zinco com que as urnas são seladas, mas não deixa de justificar que, naquelas condições, é o material «a que a lei nos obriga», como quem diz que não é aqui que se poderá reduzir o custo do enterro. O preço do chumbo também é revelado. Quando se apresentam as tabelas, elas são extraordinariamente pormenorizadas. Tal como as urnas, cujo preço está mais claramente indicado do que numa loja de mobiliário. Uma urna de pinho, simples e digna, custa na Agência Barata, em Lisboa, 24.500$00.
Ao longo da conversa, o agente funerário, longe de evitar as questões, enfrenta-as com eficácia. Pergunta «Quando é que o corpo está disponível?» O velho diz que vai haver uma autópsia no dia seguinte e que quer estar presente enquanto decorre. O agente, sabendo que se trata de uma experiência terrível, faz tudo ao seu alcance para o dissuadir. Finalmente, alegando que pode ter de esperar o dia inteiro, consegue. «Do que precisamos», termina, «é da roupa da falecida.»
O problema das agências funerárias portuguesas é o mesmo da morte em si - é um problema de dignidade. A morte não é um acontecimento bonito, ou feliz, ou simples. É muitas vezes feio, complicado, trágico. Em Portugal, os agentes funerários são mal vistos e maltratados. Reduzidos a cumprir as tarefas que mais ninguém quer fazer - desde o preenchimento da Declaração de Óbito à barba do falecido - as leis portuguesas impedem-nos de melhorar os serviços.
As agências maiores e mais tradicionais vêem frustrados os desejos de se desenvolverem e de se aproximarem dos padrões estrangeiros, não conseguindo distanciar-se das centenas de pequenas agências que proliferam em Lisboa.
Se as grandes agências nem sequer câmaras frigoríficas têm para conservar os corpos que esperam transporte para o estrangeiro, guardando-os nas garagens, em simples sacos de plástico que têm o nome pseudo-religioso de «sudários», imaginem-se as condições das pequenas agências dentro e fora das grandes cidades.
Dentro de uma destas garagens, estavam vários cadáveres altamente infecciosos, cobertos de avisos de contágio, que aguardavam transporte para outros países. Num dos casos, os próprios empregados duma agência, perante o perigo, recusaram-se a tratar do corpo. A recusa foi aceite pela gerência. Os agentes funerários não têm qualquer formação médica que lhes permita precaverem-se dos perigos envolvidos, nem dispõem do equipamento técnico necessário. Quando são chamados para acorrer ao rebentamento de uma urna, ou são atingidos por líquidos projectados por um cadáver, ou têm de tratar um corpo cuja morte foi encoberta, arriscam a saúde, sem saber até que ponto.
Não existe, em Portugal, uma única escola de formação. O único manual é tão antiquado que é inútil. O agente funerário é obrigado a fazer, no fim do século XX, com toda a variedade de situações que surgiu, o mesmo trabalho que fazia há cem anos. Em casos excepcionais, como a desfiguração do corpo de uma grande figura pública, ou a trucidação de uma criança, em que se exige um mínimo de preparação cosmética, os agentes portugueses nada podem fazer. Só podem lavar, pentear, barbear e vestir o corpo. Se lhes é pedido um simples embalsamamento, têm de recorrer aos serviços de um médico-legista. É uma profissão humilhada. Sê-lo-á enquanto continuar reduzida às funções mais básicas, aberta a todos os que queiram trabalhar nela.
O agente funerário em Portugal é motivo de desconfiança e de desprezo. Quem «ganha a vida com a morte» terá sempre esse estigma. Porém, vê-se impedido de desenvolver os seus serviços. Num país civilizado, um agente funerário é um indivíduo que minimiza as consequências psicológicas, médicas e burocráticas da morte. É uma presença, senão desejada, útil. Aqui, é um abutre. No caso dos «agentes», mal apetrechados, tanto técnica como moralmente, que funcionam às portas dos hospitais ou estão em casa à espera dos telefonemas das enfermarias, e que aparecem vestidos de blusão de ganga e calças de bombazine, esses são autênticos vampiros.
O agente é muitas vezes recebido ao pontapé. A lei responsabiliza-o pelo preenchimento de um extenso documento chamado Declaração de Óbito, em que se contêm perguntas que facilmente irritam ou hostilizam o familiar de um falecido, tal como «Deixou herdeiros menores, ou sujeitos a inventário obrigatório ou providência tutelar, quantos?» e «Deixou bens?».
A reacção típica é a desconfiança. «Muitas pessoas recusam-se a responder às perguntas todas», diz um agente de Lisboa, «mas o pior é quando desconfiam que é o agente que está a querer saber a situação financeira da família do falecido, com intuito de melhor a poder explorar... Houve uma senhora que me acusou de estar a fazer contas de cabeça... Geralmente irritam-se, dizem que não sabem. Muitos acusam-me de bisbilhotice, de querer saber a vida toda eles... como se fosse eu que estivesse a fazer as perguntas!»
«É preciso ver», continua, «que somos indesejados. Quando aparecemos, por termos sido chamados, é como se fôssemos nós os anjos da morte. Em geral, os portugueses encaram o agente funerário como um estranho. Quantas vezes ficamos à porta de casa, à espera de sermos chamados para transladar o corpo. O pior é que nos habituamos a esse papel... Quando eles nos recebem mal, sentimos menos obrigação de ajudá-las...»
«Agarram-me os colarinhos e põem-me fora de casa», conta outro agente de ar...resignado, com quem falei. «As vezes agarram-se às urnas e gritam “Seus ladrões! Seus ladrões!“»
Em vez de serem acompanhantes, pessoas habituadas ao caminho que vai da morte à última missa, os agentes funerários são vistos como meros camionistas de corpos. «Somos postos de parte desde o início», conta um «moço» que começou a trabalhar há dois anos. «Há famílias que dizem que dá azar falar connosco. Como é que podem levar a mal o facto de não sermos afectados pela morte dum familiar, se nem sequer o conhecíamos? Mas levam.
Se, por acaso, temos um gesto de mais à vontade, ou se falamos baixinho, saltam logo para cima de nós. O drama é o agente funerário ser encarado como alguém que vem tratar do morto e não como um profissional incumbido de assistir os familiares...»
O gerente de uma das grandes agências de Lisboa contou-me vários casos em que foi repreendido, não por falta de cerimónia para com o falecido, mas por excesso. «Hoje em dia», diz amargamente, «a morte é encarada com maior frieza. Por um lado, é bom, porque as pessoas sofrem menos, ou perdem os complexos - nem queira saber a quantidade de senhores e senhoras de idade que aqui entram à procura de informações! Muitos deles querem tratar da própria cremação. Há uns 10 anos seria impossível...» Para um agente funerário português, a dignidade de um funeral exige um elevado grau de empenho sentimental. Uma cerimónia fria e formal arrepia-o. Porquê? «É uma questão de educação. Aqui há uma tradição de mostrar o sofrimento, mesmo quando é forçado, ou fingido...» Pergunto-lhe se está a falar das carpideiras, ou de coisas desse género. Não está. Mas mostra-se relutante em continuar. Explica-se: «Não é a mim que me cabe criticar os sentimentos das pessoas...» Incito-o a desabafar, mas ele, em vez de falar, cala-se, dizendo apenas «Desculpe, fui pouco profissional...» Quando volto a colocar a questão a outro profissional, noto a mesma renitência. Mas este é mais explícito: «As pessoas estão mais indiferentes à morte. Nem há o choque que havia. Hoje em dia, com as progressos da medicina. já sabem quem vai morrer e até quando...» Quis saber se achava que tinha havido uma mudança cultural. «Não é isso», responde. E é então que confessa: «Ultimamente, tenho encontrado casos que me deixam muito triste... Noutro dia, um familiar dirigiu-se a mim e perguntou-me se, para fazer um funeral, era preciso tanta porcaria...»
Todos os agentes contam histórias e funerais em que os familiares, por razões de heranças, mal conseguem esconder o contentamento. Na gíria da profissão, são as «festas de gravata preta», tipificadas pelo sobrinho a quem um tio desconhecido deixou uma fortuna. Mas esse é um fenómeno antigo. «Essas festas têm um lado humano», diz ele, «que não se pode esquecer. De vez em quando morre alguém que, em vida, fez mal a muita gente... São funerais muito concorridos. Custa ver os familiares a assistir àquela gente que vai lá só para ver... Um colega meu viu uma vez chegar-se uma senhora bem vestida de uma urna, olhar para o corpo e dizer, enquanto se afastava, para quem quisesse ouvir; “Está morto, graças a Deus!”». É quando perguntamos aos agentes funerários quais são as cerimónias mais dignas que eles revelam o que entendem ser a expressão mais correcta do sofrimento. São unânimes em escolher os funerais de frades e freiras. Os adjectivos recorrentes são «bonito» e «comovente». Um deles afirma: «É tudo cantado, cheio de gente... é das coisas mais bonitas que já vi.» Não deixa de ser sinal de sinceridade o facto dos agentes profissionais escolherem como mais bonitos os funerais em que têm menor intervenção.
Surge depois uma inquietação: há outros funerais bonitos? Respondem-me: «Bem, quando é uma criança que morre e sempre multo comovente.» Compreende-se então que, não só existe um investimento emocional e religioso por parte dos agentes funerários, como uma estranha identificação entre a beleza de uma cerimónia fúnebre e a carga sentimental da morte em causa. Quando se diz que é «bonito» o enterro de uma criança, diz-se que são bonitos os sentimentos que nele se exprimem. Mas não haverá algo de mórbido também?
Pode ser que sim. Vários agentes falaram dos casos de crianças que morrem trucidadas. Como não podem preparar o corpo, limitam-se a recomendar aos pais que não o vejam. Mas é raro o caso em que este conselho, obviamente sábio, seja seguido. Por muito traumatizante que seja a experiência de ver o corpo, para mais quando está irreconhecível, as mães insistem.
«Qual é a mãe», pergunta-me um veterano, «que é capaz de enterrar um filho sem lhe dar um último beijo?» Fica-se com a ideia que, no íntimo, os agentes funerários portugueses considerá-la-iam uma má mãe. O mesmo profissional disse-me ter recebido, na ocasião do falecimento de um velhinho, «a maior lição de amor que tive na minha vida». Ao ver como a viúva continuava a conversar com o corpo do marido, como se nada se tivesse passado, desatou a chorar. É um agente com anos de serviço habituado ao sofrimento, mas não se conteve. Foi quando a senhora o viu chorar que compreendeu o que tinha acontecido. Ela virou-se para ele e pediu-lhe que não a deixasse sozinha. Acabou por ir buscar uns vizinhos para cuidar dela para poder tratar o que tinha a tratar.
Foi essa a «maior lição de amor da minha vida». Percebe-se assim que, para ele, como para os agentes funerários dignos desse nome, a morte é um instante, por onde espreita a verdade que pode haver numa vida. O que comove não é a morte nem a ausência de quem morre - é a incapacidade de aceitá-la (ou acreditar nela) de quem fica.
Compreende-se assim que, para os nossos agentes funerários, a dignidade não é apenas uma questão de meios. É também, na cultura portuguesa, uma questão religiosa e sentimental. Noutras culturas, o agente funerário chega a acumular as funções de mediador religioso. Em Portugal essa ambição não existe. As práticas espectaculares dos profissionais dos EUA não são nem conhecidas nem respeitadas, como empresas comerciais respeitáveis, as agências funerárias portuguesas apenas procuram formar, com a Igreja e a família, uma humilde colaboração. Como profissionais da morte, são os que melhor conhecem as indignidades que sofrem os nossos mortos, nos vários lugares por onde passam. «A bandalheira está a aumentar», disse-me um agente, com quem falei no início de Novembro, alegando que no Hospital de Santa Maria as câmaras frigoríficas dos cadáveres estavam avariadas há mais de quatro meses.
Mas começam a estar cansados de protestar. Segundo dizem, «a própria terra está cansada». Nos cemitérios de Lisboa é quase impossível encontrar um bom talhão, onde um corpo possa ser saudavelmente consumido. Voltar a ser pó tornou-se um processo difícil e vagaroso. Antes de baixar à terra, o coveiro corta o zinco para acelerar o processo natural de decomposição, que idealmente demoraria cerca de 5 anos. Hoje a terra, na linguagem dos coveiros, «não trabalha bem» e leva mais 5 a 10 anos do que antigamente. Os agentes funerários, habituados a receber e a tratar os corpos em locais inapropriados e em péssimas condições, têm razão para desesperar. Hoje nem a própria terra onde nascemos sabe receber condignamente um morto.
Como disse o agente com quem falava, «É por ser tão fácil faltar ao respeito aos mortos que é preciso respeitá-los mais» Regressavam sempre à mesma preocupação profunda. Não era a falta de meios, ou a falta de dignificação profissional, ou a falta de simpatia por pane do público, que os preocupava mais. Era a frieza e a indiferença perante a morte que eles, como profissionais. começam a pressentir nos portugueses.
«Qualquer dia», disse-me um deles. «a morte é mais uma coisa que acontece à gente». Como profissionais da morte, nada os ameaça mais que a sua banalização. Se as pessoas se mentalizarem que um dia vão morrer os familiares. preparando-se lentamente para o luto, estão a diluir os desgostos no dia-a-dia. Quando alguém morrer não serão apanhados de surpresa. Estão preparadas. Não sentirão o susto de ter perdido alguém para sempre. Não haverá luto verdadeiro, saudade ou aflição.
Pode fazer-se um funeral digno sem ter meios. Mas não se pode fazer sem sofrimento, sem respeito, sem revolta, sem solidão. É por estas razões que os enterros mais bonitos e comoventes são, para os agentes funerários, os das freiras e das crianças. É porque neles a morte é mais evidente. Mais evidente para os homens. E mais evidente para Deus. É quase como uma prova de vida.
in K nº16, Os homens que vivem dos mortos, Miguel Esteves Cardoso, Janeiro 1992
Posso dar-lhe uma ideia dos custos envolvidos...» O velho encoraja-o a continuar. O que ele quer é saber quanto é que lhe vai custar respeitar os desejos da filha. Sabe que não tem a mínima intenção de contrariá-los.
«Claro que, se fosse para sepultura térrea». diz o agente, «baixava umas largas dezenas de contos, de 160 para 120...» Está a fazer de advogado do diabo, tentando o velho a poupar 40 contos. O agente sabe de antemão que o velho não vai trair a memória da filha. Mas sacrifica-se a ser testemunha da lealdade dele. Como em muitos outros casos, o agente funerário lembra a crueza dos factos e dos números, para que os familiares possam reconhecer sentimentos superiores em si próprios. Assim, é com satisfação que o velho se decide pelo gavetão. Mais tarde, poderá contar que o quiseram aliciar a fazer um enterro mais barato, mas que não cedeu.
Toda a conversa gira à volta de números. O agente informa que, caso queira um embalsamamento, terá de ser efectuado por um médico e o custo roçará os 160 contos. Os embalsamamentos são raros entre nós, mas são obrigatoriamente referidos, para efeitos de descrição. É como se os agentes funerários, para se defenderem da desconfiança dos clientes, fossem propositadamente minuciosos na descrição de cada parcela. Os clientes receiam serem desagradavelmente surpreendidos pela factura final, cujo montante seria encoberto pelo pudor que rodeia a morte.
Um pouco antes, por exemplo, o agente refere o custo do zinco com que as urnas são seladas, mas não deixa de justificar que, naquelas condições, é o material «a que a lei nos obriga», como quem diz que não é aqui que se poderá reduzir o custo do enterro. O preço do chumbo também é revelado. Quando se apresentam as tabelas, elas são extraordinariamente pormenorizadas. Tal como as urnas, cujo preço está mais claramente indicado do que numa loja de mobiliário. Uma urna de pinho, simples e digna, custa na Agência Barata, em Lisboa, 24.500$00.
Ao longo da conversa, o agente funerário, longe de evitar as questões, enfrenta-as com eficácia. Pergunta «Quando é que o corpo está disponível?» O velho diz que vai haver uma autópsia no dia seguinte e que quer estar presente enquanto decorre. O agente, sabendo que se trata de uma experiência terrível, faz tudo ao seu alcance para o dissuadir. Finalmente, alegando que pode ter de esperar o dia inteiro, consegue. «Do que precisamos», termina, «é da roupa da falecida.»
O problema das agências funerárias portuguesas é o mesmo da morte em si - é um problema de dignidade. A morte não é um acontecimento bonito, ou feliz, ou simples. É muitas vezes feio, complicado, trágico. Em Portugal, os agentes funerários são mal vistos e maltratados. Reduzidos a cumprir as tarefas que mais ninguém quer fazer - desde o preenchimento da Declaração de Óbito à barba do falecido - as leis portuguesas impedem-nos de melhorar os serviços.
As agências maiores e mais tradicionais vêem frustrados os desejos de se desenvolverem e de se aproximarem dos padrões estrangeiros, não conseguindo distanciar-se das centenas de pequenas agências que proliferam em Lisboa.
Se as grandes agências nem sequer câmaras frigoríficas têm para conservar os corpos que esperam transporte para o estrangeiro, guardando-os nas garagens, em simples sacos de plástico que têm o nome pseudo-religioso de «sudários», imaginem-se as condições das pequenas agências dentro e fora das grandes cidades.
Dentro de uma destas garagens, estavam vários cadáveres altamente infecciosos, cobertos de avisos de contágio, que aguardavam transporte para outros países. Num dos casos, os próprios empregados duma agência, perante o perigo, recusaram-se a tratar do corpo. A recusa foi aceite pela gerência. Os agentes funerários não têm qualquer formação médica que lhes permita precaverem-se dos perigos envolvidos, nem dispõem do equipamento técnico necessário. Quando são chamados para acorrer ao rebentamento de uma urna, ou são atingidos por líquidos projectados por um cadáver, ou têm de tratar um corpo cuja morte foi encoberta, arriscam a saúde, sem saber até que ponto.
Não existe, em Portugal, uma única escola de formação. O único manual é tão antiquado que é inútil. O agente funerário é obrigado a fazer, no fim do século XX, com toda a variedade de situações que surgiu, o mesmo trabalho que fazia há cem anos. Em casos excepcionais, como a desfiguração do corpo de uma grande figura pública, ou a trucidação de uma criança, em que se exige um mínimo de preparação cosmética, os agentes portugueses nada podem fazer. Só podem lavar, pentear, barbear e vestir o corpo. Se lhes é pedido um simples embalsamamento, têm de recorrer aos serviços de um médico-legista. É uma profissão humilhada. Sê-lo-á enquanto continuar reduzida às funções mais básicas, aberta a todos os que queiram trabalhar nela.
O agente funerário em Portugal é motivo de desconfiança e de desprezo. Quem «ganha a vida com a morte» terá sempre esse estigma. Porém, vê-se impedido de desenvolver os seus serviços. Num país civilizado, um agente funerário é um indivíduo que minimiza as consequências psicológicas, médicas e burocráticas da morte. É uma presença, senão desejada, útil. Aqui, é um abutre. No caso dos «agentes», mal apetrechados, tanto técnica como moralmente, que funcionam às portas dos hospitais ou estão em casa à espera dos telefonemas das enfermarias, e que aparecem vestidos de blusão de ganga e calças de bombazine, esses são autênticos vampiros.
O agente é muitas vezes recebido ao pontapé. A lei responsabiliza-o pelo preenchimento de um extenso documento chamado Declaração de Óbito, em que se contêm perguntas que facilmente irritam ou hostilizam o familiar de um falecido, tal como «Deixou herdeiros menores, ou sujeitos a inventário obrigatório ou providência tutelar, quantos?» e «Deixou bens?».
A reacção típica é a desconfiança. «Muitas pessoas recusam-se a responder às perguntas todas», diz um agente de Lisboa, «mas o pior é quando desconfiam que é o agente que está a querer saber a situação financeira da família do falecido, com intuito de melhor a poder explorar... Houve uma senhora que me acusou de estar a fazer contas de cabeça... Geralmente irritam-se, dizem que não sabem. Muitos acusam-me de bisbilhotice, de querer saber a vida toda eles... como se fosse eu que estivesse a fazer as perguntas!»
«É preciso ver», continua, «que somos indesejados. Quando aparecemos, por termos sido chamados, é como se fôssemos nós os anjos da morte. Em geral, os portugueses encaram o agente funerário como um estranho. Quantas vezes ficamos à porta de casa, à espera de sermos chamados para transladar o corpo. O pior é que nos habituamos a esse papel... Quando eles nos recebem mal, sentimos menos obrigação de ajudá-las...»
«Agarram-me os colarinhos e põem-me fora de casa», conta outro agente de ar...resignado, com quem falei. «As vezes agarram-se às urnas e gritam “Seus ladrões! Seus ladrões!“»
Em vez de serem acompanhantes, pessoas habituadas ao caminho que vai da morte à última missa, os agentes funerários são vistos como meros camionistas de corpos. «Somos postos de parte desde o início», conta um «moço» que começou a trabalhar há dois anos. «Há famílias que dizem que dá azar falar connosco. Como é que podem levar a mal o facto de não sermos afectados pela morte dum familiar, se nem sequer o conhecíamos? Mas levam.
Se, por acaso, temos um gesto de mais à vontade, ou se falamos baixinho, saltam logo para cima de nós. O drama é o agente funerário ser encarado como alguém que vem tratar do morto e não como um profissional incumbido de assistir os familiares...»
O gerente de uma das grandes agências de Lisboa contou-me vários casos em que foi repreendido, não por falta de cerimónia para com o falecido, mas por excesso. «Hoje em dia», diz amargamente, «a morte é encarada com maior frieza. Por um lado, é bom, porque as pessoas sofrem menos, ou perdem os complexos - nem queira saber a quantidade de senhores e senhoras de idade que aqui entram à procura de informações! Muitos deles querem tratar da própria cremação. Há uns 10 anos seria impossível...» Para um agente funerário português, a dignidade de um funeral exige um elevado grau de empenho sentimental. Uma cerimónia fria e formal arrepia-o. Porquê? «É uma questão de educação. Aqui há uma tradição de mostrar o sofrimento, mesmo quando é forçado, ou fingido...» Pergunto-lhe se está a falar das carpideiras, ou de coisas desse género. Não está. Mas mostra-se relutante em continuar. Explica-se: «Não é a mim que me cabe criticar os sentimentos das pessoas...» Incito-o a desabafar, mas ele, em vez de falar, cala-se, dizendo apenas «Desculpe, fui pouco profissional...» Quando volto a colocar a questão a outro profissional, noto a mesma renitência. Mas este é mais explícito: «As pessoas estão mais indiferentes à morte. Nem há o choque que havia. Hoje em dia, com as progressos da medicina. já sabem quem vai morrer e até quando...» Quis saber se achava que tinha havido uma mudança cultural. «Não é isso», responde. E é então que confessa: «Ultimamente, tenho encontrado casos que me deixam muito triste... Noutro dia, um familiar dirigiu-se a mim e perguntou-me se, para fazer um funeral, era preciso tanta porcaria...»
Todos os agentes contam histórias e funerais em que os familiares, por razões de heranças, mal conseguem esconder o contentamento. Na gíria da profissão, são as «festas de gravata preta», tipificadas pelo sobrinho a quem um tio desconhecido deixou uma fortuna. Mas esse é um fenómeno antigo. «Essas festas têm um lado humano», diz ele, «que não se pode esquecer. De vez em quando morre alguém que, em vida, fez mal a muita gente... São funerais muito concorridos. Custa ver os familiares a assistir àquela gente que vai lá só para ver... Um colega meu viu uma vez chegar-se uma senhora bem vestida de uma urna, olhar para o corpo e dizer, enquanto se afastava, para quem quisesse ouvir; “Está morto, graças a Deus!”». É quando perguntamos aos agentes funerários quais são as cerimónias mais dignas que eles revelam o que entendem ser a expressão mais correcta do sofrimento. São unânimes em escolher os funerais de frades e freiras. Os adjectivos recorrentes são «bonito» e «comovente». Um deles afirma: «É tudo cantado, cheio de gente... é das coisas mais bonitas que já vi.» Não deixa de ser sinal de sinceridade o facto dos agentes profissionais escolherem como mais bonitos os funerais em que têm menor intervenção.
Surge depois uma inquietação: há outros funerais bonitos? Respondem-me: «Bem, quando é uma criança que morre e sempre multo comovente.» Compreende-se então que, não só existe um investimento emocional e religioso por parte dos agentes funerários, como uma estranha identificação entre a beleza de uma cerimónia fúnebre e a carga sentimental da morte em causa. Quando se diz que é «bonito» o enterro de uma criança, diz-se que são bonitos os sentimentos que nele se exprimem. Mas não haverá algo de mórbido também?
Pode ser que sim. Vários agentes falaram dos casos de crianças que morrem trucidadas. Como não podem preparar o corpo, limitam-se a recomendar aos pais que não o vejam. Mas é raro o caso em que este conselho, obviamente sábio, seja seguido. Por muito traumatizante que seja a experiência de ver o corpo, para mais quando está irreconhecível, as mães insistem.
«Qual é a mãe», pergunta-me um veterano, «que é capaz de enterrar um filho sem lhe dar um último beijo?» Fica-se com a ideia que, no íntimo, os agentes funerários portugueses considerá-la-iam uma má mãe. O mesmo profissional disse-me ter recebido, na ocasião do falecimento de um velhinho, «a maior lição de amor que tive na minha vida». Ao ver como a viúva continuava a conversar com o corpo do marido, como se nada se tivesse passado, desatou a chorar. É um agente com anos de serviço habituado ao sofrimento, mas não se conteve. Foi quando a senhora o viu chorar que compreendeu o que tinha acontecido. Ela virou-se para ele e pediu-lhe que não a deixasse sozinha. Acabou por ir buscar uns vizinhos para cuidar dela para poder tratar o que tinha a tratar.
Foi essa a «maior lição de amor da minha vida». Percebe-se assim que, para ele, como para os agentes funerários dignos desse nome, a morte é um instante, por onde espreita a verdade que pode haver numa vida. O que comove não é a morte nem a ausência de quem morre - é a incapacidade de aceitá-la (ou acreditar nela) de quem fica.
Compreende-se assim que, para os nossos agentes funerários, a dignidade não é apenas uma questão de meios. É também, na cultura portuguesa, uma questão religiosa e sentimental. Noutras culturas, o agente funerário chega a acumular as funções de mediador religioso. Em Portugal essa ambição não existe. As práticas espectaculares dos profissionais dos EUA não são nem conhecidas nem respeitadas, como empresas comerciais respeitáveis, as agências funerárias portuguesas apenas procuram formar, com a Igreja e a família, uma humilde colaboração. Como profissionais da morte, são os que melhor conhecem as indignidades que sofrem os nossos mortos, nos vários lugares por onde passam. «A bandalheira está a aumentar», disse-me um agente, com quem falei no início de Novembro, alegando que no Hospital de Santa Maria as câmaras frigoríficas dos cadáveres estavam avariadas há mais de quatro meses.
Mas começam a estar cansados de protestar. Segundo dizem, «a própria terra está cansada». Nos cemitérios de Lisboa é quase impossível encontrar um bom talhão, onde um corpo possa ser saudavelmente consumido. Voltar a ser pó tornou-se um processo difícil e vagaroso. Antes de baixar à terra, o coveiro corta o zinco para acelerar o processo natural de decomposição, que idealmente demoraria cerca de 5 anos. Hoje a terra, na linguagem dos coveiros, «não trabalha bem» e leva mais 5 a 10 anos do que antigamente. Os agentes funerários, habituados a receber e a tratar os corpos em locais inapropriados e em péssimas condições, têm razão para desesperar. Hoje nem a própria terra onde nascemos sabe receber condignamente um morto.
Como disse o agente com quem falava, «É por ser tão fácil faltar ao respeito aos mortos que é preciso respeitá-los mais» Regressavam sempre à mesma preocupação profunda. Não era a falta de meios, ou a falta de dignificação profissional, ou a falta de simpatia por pane do público, que os preocupava mais. Era a frieza e a indiferença perante a morte que eles, como profissionais. começam a pressentir nos portugueses.
«Qualquer dia», disse-me um deles. «a morte é mais uma coisa que acontece à gente». Como profissionais da morte, nada os ameaça mais que a sua banalização. Se as pessoas se mentalizarem que um dia vão morrer os familiares. preparando-se lentamente para o luto, estão a diluir os desgostos no dia-a-dia. Quando alguém morrer não serão apanhados de surpresa. Estão preparadas. Não sentirão o susto de ter perdido alguém para sempre. Não haverá luto verdadeiro, saudade ou aflição.
Pode fazer-se um funeral digno sem ter meios. Mas não se pode fazer sem sofrimento, sem respeito, sem revolta, sem solidão. É por estas razões que os enterros mais bonitos e comoventes são, para os agentes funerários, os das freiras e das crianças. É porque neles a morte é mais evidente. Mais evidente para os homens. E mais evidente para Deus. É quase como uma prova de vida.
in K nº16, Os homens que vivem dos mortos, Miguel Esteves Cardoso, Janeiro 1992
Comentários
Atenciosamente
Jorge Esteves