Fugir de Portugal - Parte 2 - O Ecstasy


Fotografia: Pedro Cláudio



MINUTO ZERO

É UM COMPRIMIDO cor-de-rosa, sabe a aspirina e deve engolir-se com água. Custa entre 5 e 10 contos, ninguém sabe onde se vende nem quem vende - mas que ele existe em Portugal, existe. Não nos perguntem mais nada.
Esta revista mostra mas não tem de ensinar.

MINUTO DEZ

NÃO SE PASSA NADA e achamos que fomos enganados. O mundo continua real e continua realmente triste. Os chatos insistem em aproximarem-se à velocidade da luz. Os bares já não dependem da música, nem das mulheres, nem do ambiente: dependem apenas do número de chatos por metro quadrado e das possibilidades práticas de podermos fugir a sete pés. Ao décimo minuto temos a sensação de que nada, realmente nada, nos pode fazer afastar da terra.

Começamos lentamente a pensar no momento em que, regressados a casa, teremos algum prazer em rasgar todas as revistas que descreveram, com rigor científico e em monumental delírio, os efeitos do comprimido que os holandeses decidiram criar para a nossa felicidade.

MINUTO VINTE

PRIMEIRO é uma estúpida tontura que nos obriga a parar, que nos faz pensar se não nos enganámos no comprimido, e qual é o caminho mais próximo entre o lugar onde estamos e o serviço de desintoxicação de um hospital qualquer. Essa tontura, parecida com o momento em que nos deitamos depois de um realíssimo abuso de álcool, dura exactamente dois minutos. E passa.

MINUTO 30

QUANDO a tontura desaparece, morre com ela o país real, os chatos, as distâncias, os medos, os desgostos. Morre tudo. Nasce por sua vez uma sensação de felicidade e bem-estar totais. O ar fica doce, a respiração é sempre funda e agradável, o mundo fica estúpido, como acontece com o álcool. Criam-se no nosso horizonte dois planos: num primeiro plano, existe a consciência do que fazemos, o lugar onde estamos, as pessoas com quem falamos e o que dizemos; num segundo plano, sobreposto e complementar, nasce uma estranha e oportuna capacidade de compreensão do outro, uma noção real de efemeridade da vida, e uma dose de sincera alegria. A palavra mais próxima deste efeito é mesmo essa: alegria.

Como nas canções das seitas religiosas, acreditamos nos outros homens, no amor, na capacidade de amar: temos vontade de ajudar, de falar sem medos nem remorsos nem vaidades. Dizemos tudo sem enrolar a língua - não andamos aos tombos nem ganhamos aquela estupidez própria do tradicional «charro». Pelo contrário, a lucidez é total, a paisagem ganha apenas brilho - e jamais contornos enevoados - e até Cavaco Silva, repentinamente, nos parece um homem bondoso e honesto. Acreditamos em tudo sem perder a noção de que tudo à nossa frente é mentira.

UMA HORA

APETECE dançar mais tempo do que podemos, e dançamos. A boca seca mais rapidamente do que é costume - porque falamos mais do que é costume. Aliás, tudo é geometricamente ampliado à nossa frente: os lugares crescem e a discoteca parece-nos absolutamente respirável. As pessoas ganham a importância que nunca tiveram e os problemas transformam-se em simpáticos exercícios mentais sobre «como convencer o parceiro de que este problema não existe?». O pior é que o parceiro acredita em nós.

DUAS HORAS

PARA NÓS, toda a gente à nossa volta está sob o mesmo efeito, todos tomaram aquele comprimido cor-de-rosa. Continuamos a respirar fundo, suamos mais do que é normal. Mas não interessa nada.

TRÊS HORAS

CONHECEMOS pelo menos uma pessoa por cada quarto de hora que passa. A consciência nunca se perde, o que permite conversar com os desconhecidos «certos» e perceber logo com quem não se deve falar - e descobrir que, afinal, as pessoas do Algueirão não são tão desinteressantes quanto julgávamos. O efeito do Ecstasy não abranda com o passar das horas, parece que se alimenta de si próprio.

QUATRO HORAS

NÃO INTERESSA para onde se vai, nem com quem se vai, nem o que se vai fazer. O efeito é o de uma festa de aniversário aos 12 anos: o momento é único e deve ser marcado pela liberdade total.

Desaparecem compromissos para o dia seguinte - achamos sempre que cumprimos tudo porque compreendemos tudo e todos nos compreendem - e o único compromisso que resta é com o bem-estar. Alinhamos na festa sabendo que este dia é uma excepção, sempre uma excepção, e não se vai repetir.

CINCO HORAS

LENTAMENTE, voltamos à terra. Não sobram dores de cabeça nem más disposições, apenas a vaga sensação de que a festa chegou ao fim e talvez tenha chegado a hora de dormir. Sabemos que devemos dormir profundamente, pelo menos oito horas, sob pena de acordarmos com uma ressaca que nos acompanhará durante 12 horas. Ao contrário do que escreveu o especialista do jornal Público, inspirado nos freaks da revista francesa Actuel, o comprimido não oferece orgasmos em pó nem constitui um afrodisíaco em potência: é apenas «3,4 metilenedioximetanfetamina». O que pode significar que a simpatia que repentinamente se ganha pelo mundo resulta, se for caso disso, numa madrugada melhor acompanhada. Mas essa é a parte menos interessante da história.

DIA SEGUINTE

ACORDA-SE e nada do que aconteceu na noite anterior é claro e transparente. Falta sempre um dado qualquer - e o dado que falta é justamente o da diferença entre o plano da realidade e o plano complementar do efeito do comprimido.

Resta uma dor de cabeça muito fininha e profunda, a noção de que Ecstasy não é uma droga repetitiva, pelo facto de constituir uma festa e, como todas as festas, não apetecer todos os dias. Não apetece fazer anos a toda a hora, não apetece fazer uma despedida de solteiros todas as noites, não apetece viajar eternamente.

O que sobra, no dia seguinte, é essa sensação adolescente de «ontem foi do caraças», sem nunca se perceber muito bem até onde fomos com o «caraças», nem que «caraças» se passou. Eficaz, a droga apaga-se sem deixar rasto. Como compete a uma droga que se preze.

in K, nº 15, Portugal: Como dar o salto; Ecstasy, Alberto Castro Nunes et alii, Dezembro de 1991

Comentários

Anónimo disse…
Sensacional. Sou do Brasil e li tudo, sensacional. É isso mesmo. hehehe, me identifiquei muito. Principalmente com a parte do hospital, cara parece que você LEU OS MEUS PENSAMENTOS. Não sei se tomarei a droga de novo só por conta daquele momento inicial, é péssimo. Nunca me senti tão ruim em minha vida. Mas quem sabe... se acompanhado de boas oportunidades e pessoas... eu não me lembro dos lados maravilhosos da droga e, assim, tome-a novamente.
Um abraço e parabéns, escreves muito bem.

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