Ler hoje os clássicos



O Expresso editou no último fim-de-semana, uma nova versão d'Os Lusíadas, comentada por José Hermano Saraiva, e acho que não haveria melhor maneira de comemorar esta nova edição da grande epopeia Lusitana, do que publicando um artigo que figurava na revista K nº5, de Fevereiro de 1991, com alguns excertos comentados dos Lusíadas.


A QUESTÃO CAMONIANA

O abismo cada vez mais profundo que se instalou entre os autores clássicos e os leitores levou-nos a dar início a esta rubrica que pretende ser uma simples janela para esse universo maravilhoso e inexpIorado. Eis as versões actualizadas das mais belas páginas da nossa Literatura acompanhadas por uma explicação imparcial feita pelos maiores vultos da crítica literária.

Versão original
Matéria é de coturno, e não de soco,
A que a Ninfa aprendeu no imenso lago;
Qual Iopas não soube, ou Demodoco,
Entre os Feaces um, outro em Cartago.
(Canto X, 8)

Versão actualizada

É assunto para dividir em turnos, senão há porrada. O que a gaja aprendeu na barragem; qual o rapaz que não sabe, de modo que pode entrar um dos Feios, mais outro do Cartaxo.

Explicação
O poeta apela à prudência. É do conhecimento geral que a senhora teve vários amantes durante a sua estadia em Castelo de Vide(?). Entretanto ter-se-á casado e fixado naquela localidade. É visitada frequentemente por grupos de antigos namorados, uns mais bonitos do que outros, vindos de todo o país em busca dos seus favores. É muito claro que o poeta se identifica com a figura do velho marido que se cansa de barrar o caminho aos inúmeros pretendentes da esposa. Farto de cenas de pancadaria à porta de casa, resigna-se à sua sorte. A beleza do poema está na forma como o marido, para reduzir o sentimento de ciúme que lhe provoca o porte dos mais garbosos e cosmopolitas, manda entrar um dos mais feios e um do rancho do Cartaxo.

Não será a culpa abominoso incesto
Nem violento estupro, em virgem pura
Nem meuos adultério desonesto,
Mais Cua escrava vil, lasciva e escura.
Se o peito, ou de cioso, ou de modesto,
Ou de usado a crueza fera e dura,
Cos seus hua ira iusaua não refreia,
Poe, na fama alva, noda negra e feia.


Desculpem, mas a culpa não é do incesto, por muito abominável que seja, nem mesmo quando se viola uma virgem pura, quanto menos tratando-se apenas de uma voltinha bem disfarçada, a culpa é das criadas negras, que são más e lascivas. Tenham elas peitos imponentes ou pequenos, seja qual for o grau de violência e dureza que se use, os gemidos delas põem-nos malucos e nunca mais se pára. A verdade é que é o homem branco que fica com a reputação manchada por causa das pretas feias.

Escrito no Cabo da Boa Esperança, o poeta, indignado com o racismo dos colonos sul-africanos, denuncia a moral hipócrita da época. Adoptando a voz de quem procura justificar os actos infames de luxúria que na altura se praticavam com as escravas negras, o poeta, através da hipérbole e da onamatopeia ("hua", "cua", "cos"), revela as contradições em que cai todo o cristão que busca o sexo inter-racial sem o consentimento da moça.
Não é tanto a expressiva violência dos versos que impressiona o leitor desprevenido como a actualidade de que - infelizmente - ainda se revestem nos dias de hoje. Por muito que alguns dirigentes prometam desmantelar o sistema de apartheid, a verdade é que ainda há muitos abusos.

Almas divinas gozam, que não anda,
Outro corre, tão leve e tão ligeiro,
Que não se enxerga: é o Mobile primeiro
(Canto X, 85).

Há muita gente armada em boa que goza e diz que não anda, mas há outro que anda tão depressa que nem se vê: com Mobil, é sempre o primeiro.

Mais uma vez, o poeta ridiculariza os espíritos retrógrados que se opunham à importação de lubrificantes estrangeiros, alegando que não eram compatíveis com as rodas dos coches portugueses. A imagem de um coche a passar velozmente diante dos olhos dos descrentes é bela. Admiremos também a coragem de um homem que não teve medo de desafiar os tribunais da época, utilizando uma referência a uma grande marca americana para reforçar o cariz crítico do seu poema.


In K, nº5, Ler hoje os clássicos, Fevereiro de 1991

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