À luz do Sul



Alguém bate insistentemente à porta de um dos quartos do Algonquin Hotel, em Nova Iorque. Não há resposta, só um silêncio absoluto. Nova insistência, novo silêncio. Alguém desce as escadas, precipitadamente, e chama o recepcionista do hotel. Os dois dirigem-se ao quarto, com a chave-mestra. Abrem a porta. As janelas estão abertas, e o vento gelado daquele Inverno percorre o quarto livremente. A cama não foi utilizada. Há um cheiro intenso, desagradável e indefinido. Parece uma mistura de suor e álcool estragado. Várias peças de roupa estão espalhadas nos sítios mais improváveis: um irrepreensível casaco de tweed no candeeiro de cabeceira, umas calças em cima de uma cómoda, uma camisa de linho creme em cima do riquíssimo tapete do quarto. Apenas se vislumbra um sapato, castanho escuro, atirado para um canto. Ao lado do aquecimento central está um homem deitado de bruços, vestido apenas com uns calções. Nas costas apresenta uma queimadura que parece ser grave. O homem não se mexe, mesmo quando o abanam e o procuram acordar. Não responde até ao som do seu nome. O maior escritor americano do seu tempo estava em coma alcoólico, outra vez.

Este episódio de 1937 não foi o único nem o primeiro na vida de William Faulkner. O prémio Nobel de 1948 só teve o azar de não poder ser um alcoólico anónimo, mas por outro lado, nem o quereria ser. «Civilization begins with destillation», gostava ele de se citar vezes sem conta. Na vida e na arte de Faulkner, o álcool teve um papel mais importante do que fornecer o pitoresco das histórias que dele se contavam: a pouco e pouco, destruiu-as a ambas.

Olhando para a infância do escritor e para a história da sua família, quase que se lhe poderia prever este destino. Faulkner nasceu Falkner, sem «U», no dia 25 de Setembro de 1897, na cidade de New Albany, Mississipi. Foi o filho primogénito de Maud e Murry Falkner. A sombra da história familiar - sobretudo a figura do bisavô William Clark Falkner, conhecido como «Old Colonel» - e a pressão social que era pertencer a uma família respeitável do Sul em plena crise de terceira geração vão marcar toda a personalidade do escritor, ao mesmo tempo que lhe dão a base de quase toda a sua obra.
O coronel William Clark Falkner foi um homem notável. Representou o homem do Sul característico, uma mistura de guerreiro, cavalheiro e aristocrata. Foi plantador, advogado, herói da Guerra da Sucessão, político, escritor, e um dos primeiros homens a desenvolver o caminho-de-ferro naquela zona do Mississipi. Aos poucos, as histórias que dele se contavam iam-se transformando em lenda, omitindo o feitio violento e até cruel que possuía. Alguns dos homens que com ele combateram na guerra civil trouxeram relatos de atrocidades cometidas em inimigos e subordinados. Mas os mitos são sempre perfeitos, e o Sul, depois de destroçado, precisava de mitos. A morte violenta do Old Colonel - assassinado a tiro na rua por um sócio de negócios - só serviu para confirmar a lenda e estabelecê-la como uma referência difícil de superar.

William Faulkner cresceu ainda sob a memória do velho coronel, e das histórias que dele se contavam. Viu o desespero de um pai impotente para estar à altura de tão ilustre antepassado, a vaguear de emprego para emprego com pouco mais do que um nome para sustentar a família. Murry Falkner sempre se sentiu um homem falhado, sobretudo depois da perda do emprego em Ripley. Quando se mudou para Oxford com a família, em 1902, era já visto pela população local como a ovelha negra dos Falkner de outrora. A medida que o tempo passava, Murry afundava-se cada vez mais num mundo só dele. Dizia apenas as palavras que tinha a dizer, e proibia terminantemente qualquer tipo de conversa durante as refeições. Os silêncios só eram cortados pelas críticas ásperas da sua esposa Maud, uma mulher ambiciosa, orgulhosa do nome de família do marido mas envergonhada pela sua incapacidade.

Maud queria futuros mais brilhantes, e dizia-o a um marido derrotado. Murry Falkner só estava feliz quando passeava pelas florestas do Mississipi, que conhecia como a palma das mãos, e quando bebia. O jovem Bill e os seus irmãos conheceram desde muito cedo as peregrinações à chamada Keeley Cure; viram, vezes sem conta, o seu pai ser levado em braços, inconsciente depois de uma bebedeira. Era um ritual que a mãe os obrigava a assistir, como aviso futuro para os filhos e uma humilhação mais para o marido. A Keeley Cure não era novidade para a família Falkner, porque já o pai de Murry a tinha conhecido: era um método arcaico de cura para o alcoolismo, consistindo basicamente na injecção de uma substância que produzia repugnância ao álcool. Como é previsível, este tipo de terapia tem resultados muito limitados, já que uma vez passado o efeito da droga, o alcoólico recomeça a beber. A sua única e pequena vantagem era a de que permitia a sobriedade completa e quase imediata.

Vivendo no meio de um pai falhado e de uma mãe ambiciosa, começa a crescer em William Faulkner uma tendência para o silêncio e a autopunição. A bebida chegava a seguir.

A cultura sulista encarava o álcool como parte integrante do ser homem; daí que ninguém estranhou que aos dez anos o jovem Faulkner aparecesse, por mais de uma vez, completamente embriagado. Toda a gente via isso quase como um ritual de iniciação para um rapaz do Sul, e tinham razão; havia a tradição dos heeltaps, os restos de bebidas servidas nas ocasiões sociais, que eram dadas às crianças; e também as caçadas ao veado, onde o bourbon circulava livremente entre homens de todas as idades. Só que o hábito de beber ia ficando cada vez mais forte em Faulkner, enquanto que a sua resistência ao álcool aumentava dramaticamente. Eram os primeiros sinais de alcoolismo.

Para além da bebida, Bill procurava refúgio e afeição nas histórias que lhe contava Mammy Callie, uma velha negra que tinha sido escrava. Faulkner começou a ouvir as primeiras descrições das paisagens e das almas a que iria dedicar o melhor da sua obra. Outro dos seus momentos favoritos era quando estava com a avó materna, senhora de alguma cultura, que o ensinou a desenhar e lhe deu a conhecer alguns escritores. Entretanto, as suas relações com os pais degradavam-se, sobretudo com o pobre Murry, que Faulkner secretamente culpava de ausência e falta de amor. Não havia confrontação directa, porque a personalidade do escritor era mais dada a silêncios e omissões. E Faulkner via-se cada vez mais atraído pelo fantasma do bisavô. Na escola já respondia que queria ser escritor «like my great granddaddy»; recomeçou a fumar o cachimbo do Old Colonel; e resolveu definitivamente ser o descendente digno do seu antepassado ilustre. Tudo isto só o distanciava do pai, e esta relação irá mantê-la até à morte de Murry.

A autopunição foi uma constante na infância e adolescência de Faulkner. Com a sua vontade desesperada de imitar o bisavô, o escritor via-se subitamente consciente das suas limitações físicas. Para começar, era baixo, em contraste com o gigante que tinha sido o seu antecessor; depois, as suas feições eram parecidas com as da mãe, coisa que para um varão sulista o deixava um bocadinho menos bem cotado. A sua resposta foi característica do seu estado de espírito: para reforçar a sua pequena estatura, passou a vestir roupas muito apertadas; e mesmo quando a mãe o obrigou a vestir, todos os dias, um colete de tela que lhe endireitava as costas e supostamente lhe concedia um andar mais digno, Faulkner não emitiu uma única queixa - apesar das dores tenebrosas que sentia.

«Tenho pouca paciência para factos.» Ao mesmo tempo que formava a atitude que haveria de manter para sempre com desconhecidos - reserva ostensiva, misturada com uma educação do Sul -, Faulkner começa também a dar os seus primeiros passos na sua formação literária. Os seus primeiros fascínios são poetas decadentes de fim de século, como Swinburne e Baudelaire. São eles que lhe dão o estímulo para escrever poesia e o desejo definitivo de ser poeta. Para além disso, fornecem-lhe a justificação cultural para o seu hábito alcoólico que aumenta a olhos vistos: Faulkner vê-se como mais um seguidor da tradição dionisíaca dos artistas, em que as substâncias tóxicas apenas servem para aumentar a percepção do criador, dando-lhe a descobrir novos mundos que o consciente não pode atingir. «Embriagai-vos! De vinho, de virtude, de poesia - à vossa escolha!", escreveu Baudelaire. Faulkner escolheu o primeiro e o último.

É um período de grande esteticismo, em que o jovem William segue a imagem dos seus ídolos literários até no modo de vestir - Faulkner torna-se um dandy, um personagem que toda Oxford conhece.

A par com esta sofisticação nos modos e na aparência, Faulkner convive com os bêbados da cidade, ouvindo-lhes as histórias e criando ele próprio as suas. Sempre foi e irá ser um contador de histórias, e não havia nada que lhe desse mais prazer. Este hábito manteve até ao fim, sendo por isso muito difícil ainda hoje, passados 30 anos da sua morte, perceber se alguns episódios da sua vida são verdadeiros ou não.

Uma coisa é certa: os episódios heróicos da sua estadia na British Canadian Air Force fazem parte das grandes invenções do homem que disse um dia que tinha «muito pouca paciência para os factos». Tudo se deve ao tal desejo de ser um gigante. Quando os Estados Unidos entram na I Grande Guerra, Faulkner dirige-se imediatamente ao centro de recrutamento mais próximo. Mas a sua pequena estatura, os seus hábitos alcoólicos e a sua compleição fraca não o qualificam para ser soldado. É rejeitado. Foi um golpe muito duro para quem sonhava com feitos épicos. Faulkner vê-se de repente só: sem família, sem amor - a namorada e finalmente futura esposa, Estelle Oldham, ia casar-se com outro - e com pouquíssimos amigos para além do seu tutor e defensor Phíl Stone, Wílliam Faulkner resolve por fim abandonar o passado - carrega o apelido com um «u» e adquire um sotaque inglês.

Nesta figura, parte para Nova Iorque com documentos falsos e dirige-se a um departamento de recrutamento da RAF. Provavelmente devido à falta de voluntários, é aceite e destacado para a base de Toronto. Quando a guerra termina, o cadete Faulkner ainda lá estava. Nunca chegou a voar.

Isso não o impede de voltar a Oxford, Mississipi usando a farda de gala da RAF e coxeando de uma perna. Quando lhe perguntam o que lhe aconteceu, descreve um estonteante combate aéreo que nunca teve lugar. Irá arrastar esta versão e a falsa perna aleijada até 1924.

Descobertas. Finalmente é publicado The Marble Faun, a primeira obra de Wílliam Faulkner, ainda decidido a ser poeta. É mais uma colecção de citações literárias do que um poema, mas reflecte todo o processo «educativo» a que Faulkner esteve sujeito: Keats, Swinburne, Eliot, Houseman, Verlaine e Mallarmè. Felizmente, o escritor descobre que não é essa a sua vocação. E em 1927, faz a grande descoberta da sua vida: a sua arte está em contar como ninguém o seu «little postage stamp of native soil». Nasce aqui o demiurgo do Mississipi, o homem que modela como ninguém «a agonia e o suor do espírito humano». Daquelas florestas, daqueles pântanos, Faulkner cria a sua galeria de pais ausentes, mães autoritárias e cavaleiros falhados como o Quentin Compson de The Sound and the Fury. É um mundo de escape, de dor e redenção pela morte ou pela memória. São forças que vêm de dentro a chocarem contra as pressões sociais e externas. Faulkner é enfim o provinciano universal, «a taler and a teller» que escreve obras-primas como The Sound And The Fury, Sanctury ou Absalom! Absalom!.

Mas o talento não resiste ao álcool. A partir de 1940, tudo o que Faulkner produz está abaixo do seu nível - exceptuando os argumentos de À Beira do Abismo e Ter e Não Ter. Bebe cada vez mais e não faz segredo disso. O seu grande amigo Howard Hawks leva-o mais de uma vez para casa nos braços, em segredo para que o escritor não perdesse o seu emprego em Hollywood.

Em 1937 já começou a necessitar de uma infusão diária de álcool: agora, as idas e vindas da desintoxicação vão-se tornando corriqueiras. A filha Jill, numa tentativa desesperada de não o deixar beber num dos seus aniversários, implora-lhe para não tocar no bourbon nesse dia. Faulkner responde, seca e educadamente: «Minha querida, ninguém se lembra da filha de Shakespeare».

Apesar das alucinações e dos ataques de histerismo serem frequentes - com o escritor aos gritos e com medo da «aviação alemã» -, Faulkner não se separa do seu copo de whisky com água, que mantém ao lado da máquina de escrever. Depois de uma grande bebedeira, toma sempre duas ou três «recovery drinks» que o devolvem a um estado de semi-embriaguez.
Episódios como os do Algonquin Hotel tornam-se comuns. A saúde fica cada vez mais debilitada, como o seu casamento com Estelle Oldham, outra alcoólica. As amantes que mantém apenas servem para lhe escutar as récitas de The Phoenix and The Turtle, de Shakespeare - um momento clássico das suas bebedeiras. Mas ainda diz a Lauren Bacall: «When I have a Martini I feel bigger, wiser, taller; when I have two, I feel superlative; when I have more, there's no stopping me».

Era tarde de mais para o parar. A criatividade tinha secado e aquilo que ele julgava ser o seu «big book» - A Fable, uma história que conta o regresso de Jesus e os doze apóstolos como soldados da I Guerra Mundial - é mal recebida. Hemingway diz: «His last book a Fable isn't pure shit. It is impure dilluted shit».

Faulkner já não se preocupava. Desde os anos 50 que se via como um proprietário e não como um escritor. Encontrava alegria nas caçadas à raposa, que insistia em participar apesar de estar constantemente bêbedo.

No dia 7 de Julho de 1962, depois de outro tratamento de desintoxicação, morre o maior escritor americano do seu tempo. William Cuthbert Faulkner morreu no dia do aniversário do seu bisavô.

in K, nº20, Ídolos, À luz do Sul, Nuno Miguel Guedes, Maio 1992

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