Fugir de Portugal - Parte 4 -A Coca


Fotografia: Pedro Cláudio



QUE IRONIA ESTA, que dentro da asfixia provocada por um país que consagra por indiferença, por ambição ou por ressentimento um sistema tecnocrático como o cavaquismo, a cocaína - a mais técnica de todas as drogas - possa ser uma maneira de escape.

Se se pudesse dar uma droga a cada cor política, a cocaína seria a droga do regime, como o charro é a dos desiludidos da esquerda, a heroína dos abstencionistas, a ecstasy dos CDU e liberais, etc. é evidente que a cocaína não é propriamente uma droga dos trabalhadores: pelo preço, à volta de doze contos a grama; pelo efeito - a coca é a droga da eficácia imediata, não da produção em série.

Cheira-se uma linha e tem-se a sensação de que se pode ser nomeado subsecretário de Estado sem necessidade de experiência alguma (pegue-se neste exemplo só como um exemplo, não como um boato). Ou que seremos irresistíveis em qualquer sítio e com qualquer pessoa, é um facto que devemos acreditar quase cegamente na experiência médica e nas autoridades sanitárias para nos podermos solidarizar com a perseguição implacável que se faz à venda legal deste produto.

O seu efeito energético parece tão perfeito que não se compreende onde está o mal. O certo é que a velha maneira de fugir enfrentando taurinamente as campinas encarnadas dos nossos desafios sem pensar duas vezes ainda funciona, e a coca está feita exactamente para isso.

O seu efeito é descritível. Ao cheirá-Ia, quando é mesmo boa, sentimos primeiro um frio anestésico nas narinas. Logo a seguir uma sensação speedygonzaliana tipo de gritar andale, andale. E pronto, estamos preparados, com coragem e decisão, para enfrentar as vicissitudes que a vida nos coloca.

Em termos estritamente económicos, feitas as contas, não é tão caro como tudo isso. Uma garrafa de whisky novo numa discoteca custa cerca de quinze contos.
O que dá, pouco mais ou menos, um conto por copo. Uma grama pode dar, dependendo da sua pureza, mais de doze linhas, o que a equipara ao preço do whisky - menos a ressaca, claro. A coca, quando não misturada, não dá ressaca.

O efeito gingão e grosseiro que o álcool provoca não se sente com a cocaína. Contudo, têm em comum uma verdadeira vocação social. A conversa fácil e uma certa diminuição da timidez são notáveis. A sensação da omnipotência dura pouco, e a repetição da dose é necessária. Com 1/3 de grama um cidadão bem nascido faz uma noite, o que dá quatro ou cinco contos. Estas previsões variam de acordo com a utilidade que se queira dar a este produto.

Se se trata de terminar um trabalho, a maior ou menor disposição para o dito pode sugerir uma necessidade também maior ou menor da quantidade a consumir.

Como todas as coisas, a assiduidade de consumo influencia também as quantidades necessárias. Claro que se pode falar de coca como a droga abrangente por excelência. Não nos desvia dos nossos objectivos nem distorce a realidade. Só as nossas potencialidades são artificialmente exageradas. Em qualquer situação em que nos encontremos parece que funciona em cheio. O incrível é que é verdade.

Não vamos falar aqui se com o tempo faz mal ou não, mas certamente aquele efeito eufórico faz muito bem. Não nos enganemos. O êxito da droga reside no seu efeito imediato. A longo prazo, tomado abusivamente ou sem períodos de recuperação, deve, provavelmente, fazer mal. Aliás, tudo faz mal nessas condições. Até a aspirina ou o camembert. Mas esse é outro problema.

COISAS QUE ESCAPAM

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Os Nossos amigos

in K, nº 15, Portugal como dar o salto: Cocaína / Coisas, Alberto Castro Nunes et alii, Dezembro 1991

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