Rua dos Cardais de Jesus


Pintura de Ilda David



ESTANDO nesta minha morada sazonal, num sábado lento, como são os da cidade, fui surpreendida pela harmónica do amola-tesouras e cujo emblema era um guarda-chuva desmantelado. Daí que o pusessem na lista dos maus presságios anunciador de borranca. E a verdade, é que ela chegava sempre. A nitidez com que soava a gaita de beiços era já prenúncio de ser coada pela humidade do ar. Lisboa é ainda um paraíso de usos e costumes. A par do grande mercado, abundante de queijos franceses e melões de Murcia, há ainda a venda miudinha de bairro que é tão central como o Patriarcado e aonde chegam de todos os clientes: meninos de escola que mascam pastilha elástica e velhas reformadas que discutem o drama dos Kurdos, entre um pacote de margarina e uma caixa de fósforo.

Lisboa tem tudo o que tinha há cem anos e algumas novidades de computador e electrodomésticos entre os quais reina o micro-ondas. O lixo é hoje mais sofisticado e não existe já o guarda-mor dos Lastros que proibia deitar imundícies no rio e entulhos fora do lugar próprio. Não cheira a lamas amontoadas na ribeira de Lisboa, mas as condições dela não é das melhores. Já não há cavalariças para limpar como no tempo do tirano Angias, sendo o Tejo o lava-pés da cidade e a praia de Remolares um escoadouro de bosta e palha traçada. Todavia havia espectáculos de que o lisboeta se aproveitava como de uma cartilha de maneiras. A chegada das noivas dos príncipes era um deles. Imitava-se o penteado de estrangeiras, como quando chegou Maria Pia e a sua cabeleira ruiva deslumbrou as mulheres. Ainda hoje se sente essa fina maneira de copiar o cone e os rapazinhos de dez anos são precavidos de réplicas e sentimentos áulicos. Isto faz de Lisboa um parador engastado no Tejo que parece ter inventado a cidade a partir da sua enseada.

Não sei se há lugar mais belo na face da Terra. Tem um ar descansado e um viver sem riscos que é civilidade sem compromissos. O que noutros lugares são vestígios de outras eras (como em Roma, aonde o monumento é uma forma de tratar a História por tu), aqui ninguém se humilha às suas riquezas. O valor das coisas está em elas serem estáveis e não surpreendentes. Diz-se mesmo que o Mago Ruffiamonte de que fala Hoffman, foi em Lisboa que se inspirou para produzir versos encantadores: «A cidade onde a livre fantasia se desprende como no pequeno mundo do teatro» e onde, como ele diz, «a humildade se transforma em nobreza». Bendito Hoffman, se alguma vez conheceste Lisboa, aí percebeste que aí existe um "EU" que faz nascer o seu duplo, e dividir o próprio coração mantendo, no entanto, a sua expansão própria.

Difícil é encontrar melhor acorde com o paraíso, onde todos os perfumes celestes seriam percebidos se não andasse no ar o cheiro dos escapes e do lixo que transborda dos baldes. Agora mesmo ouço um arrulhar de pombos, nascidos nas cornijas por Obra do Santo Espírito e que combinam com a distante música do amolador, que sobe a rua dos Cardais de Jesus.

Ah, esta linguagem, ó jovens dos quatro costados, é-nos dedicada. Duvidai da luz do Sol, e da luz das estrelas; podeis pensar se a verdade pode mentir. Mas não duvideis dos magos e do seu poder sobre a Tetra. Ou então, o cheiro que percebo daqui, das cozinhas da Misericórdia, é o do vosso coração temperado com pimenta negra, da que o diabo usa para lhe fazer brilhar os olhos. Parece-me a rua, onde soa a música do compõe - loiça - e - guarda-chuvas, uma rua onde apareciam fósseis do mar. Conchas e pedras onde ficou impresso o esqueleto de peixes pré-históricos. E um vento quente arrasta a capa do Marquês por cima dos telhados. Dizem que esteve aqui, na noite do terramoto. O Mago Ruffiamonte encontrou-o ao virar a esquina; e disse: «as cidades celestes conhecem-se porque têm amigos até no inferno».

in K, nº 10, Rua dos Cardais de Jesus, Agustina Bessa-Luís, Julho 1991

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